É possível garantir empregos? - Henry Hazlitt

Originalmente publicado como o capítulo 13 de Man vs. the Welfare State (1970).

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Quando uma pesquisa da Gallup de junho de 1968 perguntou às pessoas se elas eram a favor de uma renda garantida para todas, estando elas dispostas a trabalhar ou não, apenas 36 por cento disseram sim e 58 disseram se opor. Quando os pesquisadores perguntaram às mesmas pessoas se o governo deveria "garantir empregos suficientes de forma que cada família que tenha um trabalhador empregável tivesse suficiente trabalho toda semana para garantir uma renda de US$60 por semana ou US$3.200 por ano", 78 por cento responderam sim. Apenas 18 se opuseram.

Contudo, a noção plausível de que o governo deve se tornar o "empregador em último caso" é tão inconsistente na prática quanto a renda garantida sem qualquer trabalho.

Os políticos no poder certamente não quereriam ser acusados de oferecer empregos mais duros ou piores condições que os empregadores privados mais pobres. Assim, eles teriam que oferecer empregos mais fáceis e muito melhores condições, e provavelmente atraíriam muitos trabalhadores de empregos privados marginais existentes para os empregos criados pelo governo. Para a maioria dos afetados pelo plano, o governo de fato se tornaria o empregador de primeiro caso.

Já existe uma demanda por trabalhadores para trabalhos que precisam ser feitos, e os quais os empregadores querem e pelos quais podem pagar o salário mínimo legal. O governo portanto teria que inventar trabalhos que precisam ser feitos ou, pelo menos, que não valem a pena ser feitos pelo salário mínimo.

Os trabalhos inventados, além do mais, teriam que estar onde estariam os desempregados. O governo não poderia anunciar que haveria muitos empregos garantidos nas florestas do Alaska para os favelados da cidade de Nova York — a não ser que provesse também transporte garantido para os trabalhadores, suas famílias e seus móveis, garantisse suas casas, compras, escolas e outras condições de vida.

Sob esse programa, é óbvio que a maior parte do trabalho feito não faria sentido e seria inútil, e a maioria dos empregos criados seriam desnecessários e falsos.

Isso não é tudo. E se os trabalhadores com empregos garantidos fossem incapazes de aprender como executá-los, ou que criassem mais resíduos que produção usável? E se eles habitualmente chegassem uma ou duas horas atrasados, ou levassem três horas para almoçar, ou aparecessem somente para receber o pagamento, ou ignorassem todas as instruções, ou fossem insubordinados, ou cometessem atos de sabotagem e vandalismo, ou chutassem o chefe escada abaixo? Seus empregos seriam garantidos, não seriam?

Quem quer que pense que eu estou imaginando problemas só precisa ler os detalhes do tumulto de 1.500 jovens fora da prefeitura de Nova York em 10 de julho de 1968. Eles protestavam contra os cortes do projeto do programa de empregos de verão da cidade. Cito a descrição do New York Times:

Alguns dos jovens (a maioria deles adolescentes das áreas brancas, negras e porto-riquenhas pobres) destruíram seis automóveis estacionados fora da prefeitura da cidade, atiraram pedras, garrafas e pedaços de vidro quebrado contra a polícia e saquearam as vãs e bancas de revistas da área. No auge da perturbação, os bandos de jovens saíram do parque da prefeitura, destruíram várias janelas do Edifício Woolworth e derrubaram e roubaram uma mulher de 50 anos.
Essa tática foi belamente recompensada. No dia seguinte, o prefeito John Lindsay anunciou que a cidade alocaria US$5 milhões para mais empregos de verão. Antes daquilo, ele tinha asseverado repetidamente que nenhum dinheiro estava disponível para esses empregos.

Isso não significa que o problema de prover mais empregos reais para os não-qualificados e para os adolescentes seja insolúvel. Como alguns eminentes economistas já apontaram, o passo mais importante seria repelir a lei federal de salário mínimo.
Henry Hazlitt (1894-1993) foi um economista e jornalista liberal. Foi o vice-presidente fundador da Foundation for Economic Education e editou a revista The Freeman, além de ter escrito mais de 25 livros.

Teoria do caos - Robert P. Murphy

Todos os homens de honra são reis. Mas nem todos os reis têm honra. — Liam Neeson, Rob Roy

Índice

Prefácio

Agradecimentos

Introdução

Lei Privada

Defesa Privada

Sobre os Anarquistas

Elogios a Teoria do Caos
"O livro de Robert Murphy é uma contribuição importante e inovadora à especulação sobre como poderia funcionar uma sociedade verdadeiramente voluntária. Qualquer um comprometido com essa tarefa, ou interessado mas cético, deve lê-lo."
Gene Callahan, autor, Economics for Real People
"Bob Murphy é um brilhante e criativo anarquista libertário. Leia seu livro!"
Llewellyn H. Rockwell, Jr., Center for Libertarian Studies

Prefácio

Este livro é dedicado àqueles que acreditam que o governo é um mal necessário: Vocês estão metade certos.

Os seguintes ensaios mostram que as duas "funções" mais cruciais do governo — lei e defesa — podem ser eficientemente providas pelo livre-mercado. Assim, demonstra-se que o Estado é completamente desnecessário. Anarquia, a ausência de governo coercitivo, não deve ser confundida com caos.

Em vez de me envolver em debates filosóficos quanto a valores, eu enfoco a mecânica do "anarcocapitalismo" ou "anarquia de mercado", o único sistema social que respeita a santidade dos direitos de propriedade e dos contratos. Em vez de atacar o ideal socialista de igualdade, eu ofereço o ideal anarquista de mercado de equidade.

Eu, em última instância, deixo para o leitor decidir qual sistema — Estado ou mercado — é a melhor organização.

Bob Murphy

Agradecimentos

Meu débito intelectual em relação à teoria anarquista pertence, sem dúvida, ao grande Murray Rothbard (1926-1995). Em sentido mais amplo, minha visão de "como o mundo funciona" se deve primariamente àquela fonte de sabedoria, o tratado de Ludwig von Mises Ação Humana.

A idéia original deste livro (e a Introdução) vieram de Jeremy Sapienza. Robert Vroman proveu as maravilhosas (mesmo que meio perturbadoras) ilustrações que tão piedosamente interrompem a monotonia do texto. Matt Pramschufer fez o design da capa.

Zach Crossen e Pete Johnson revisaram um rascunho inicial deste livro. Sou grato a Lew Rockwell e Gene Callahan — dois heróis de hoje em dia na batalha das idéias — pelos gentis comentários na contracapa. Eu gostaria de agradecer aos participantes do fórum do Anti-State.com por suas constantes (mesmo que às vezes ásperas) críticas e questionamentos de minhas visões certamente não-ortodoxas. Rachael Anne Fajardo teve um papel indispensável ao prover constante encorajamento e sugestões.

Finalmente, eu devo agradecer a Ron Pramschufer e o resto do grupo da RJ Comunicações por fazer parecer que eu já tinha publicado algo antes.

RPM
Abril de 2002


Introdução

Então, Teoria do Caos, hein? É, não é mesmo sobre a teoria do caos1, mas ele é realmente um título legal. E o livro em si talvez seja o mais importante até hoje na teoria anarquista e sua possível aplicação ao "mundo real".

Quando eu primeiro li o rascunho do livro do Bob, eu fiquei pasmo com a incrível simplicidade de seus argumentos, algo que eu acho que está faltando em muito da literatura anarquista existente. Suas explicações simples, uma esperta mistura de senso comum e teoria econômica fácil de entender, proveem um perfeito ponto de partida para o não-anarquista curioso, ou um fantástico ponto de chegada para o comprometido anti-estatista que tem algumas poucas dúvidas logísticas sobre a sociedade sem Estado.

Eu conheço o Bob por um tempo já, desde "os tempos" em que nós éramos colunistas regulares no LewRockwell.com. Em maio de 2001 ele me ajudou a montar o Anti-State.com, que cresceu até ser o maior site anarquista de mercado da internet (sério!). Ele continua, com este livro, sua generosa contribuição à próxima geração da evolução anarquista, que parece ter estagnado em anos recentes. A contínua expansão da filosofia da não-agressão e da cooperação faz dobrar os seus defensores para que eles levem a alta teoria econômica e moral ao nível do homem comum.

Bob aborda os argumentos mais comuns contra a abolição do Estado — e os destrói completamente. "Quem vai proteger as fronteiras se não houver Estado?" Ninguém, imbecil. Não há fronteiras, exceto as da propriedade privada. E essa é defendida sem o Estado da mesma forma que nós fazemos agora com o Estado.

Eu sei. "E se houver um Estado vizinho psicótico muito superior economicamente que quer invadir o país sem Estado?" Bom, só porque não há Estado, não se segue que não há defesa. É uma tática comum dos estatistas a de nos acusar de querer abolir, digamos, a assistência para os pobres, já que eles pensam que ela seria impossível sem o Estado. Mas isso não é verdade: nós não queremos que o Estado roube nosso dinheiro e dê para aqueles que não o mereçam. Nós queremos o direito à nossa propriedade, incluindo todo o nosso dinheiro, e o direito de ajudar quem quer que nós consideremos que mereça. Isso é consistente com a única regra do libertarismo: o Princípio da Não-Agressão.2

Na primeira seção, Bob explica como uma sociedade sem governo mesmo assim teria leis e "regulações". Não haveria violações (legais) dos direitos dos donos de propriedade. Na anarquia de mercado, a justiça seria baseada na restituição, não em retribuição, o que significa que os criminosos teriam que restituir suas vítimas em vez de serem punidos pelo sádico Estado.

Na segunda seção, Bob brilhantemente aborda a questão da defesa privada. Eu me recuso a arruiná-la para você — corra, leia essa introdução e então vá para o primeiro capítulo.

Para resumir minha impressão do livro, basicamente: inteligente, sucinto e, o mais importante, escrito na linguagem da pessoa comum, sem o esnobismo acadêmico arrogante tão presente nos trabalhos disponíveis atualmente, que tendem a ser um grande problema para aqueles de nós que estão tentando popularizar o movimento.

Este livro com certeza vai virar uma parte fixa das bibliotecas pessoais de incontáveis libertários e anarquistas, e um clássico no campo da teoria anarquista e da economia austríaca.



Notas:

1 A teoria do caos é o "estudo qualitativo de comportamentos aperiódicos em sistemas determinísticos dinâmicos não-lineares." Veja http://www.duke.edu/%7Emjd/chaos/chaos.html

2 O PNA afirma que "ninguém tem o direito, sob quaisquer circunstâncias, de iniciar força contra qualquer outro ser humano, nem de delegar sua iniciação". É tão simples que você pensaria que ele ia se disseminar mais, Ah, e ter o Estado para fazer o seu trabalho sujo é delegar, então o Estado, por sua própria existência, viola o PNA.


Lei Privada1

Inquestionavelmente, o sistema legal é uma faceta da sociedade que supostamente requer a provisão do Estado. Mesmo defensores do laissez-faire como Milton Friedman e Ludwig von Mises acreditavam que um governo precisa existir para proteger a propriedade privada e definir as "regras do jogo".

Contudo, seus argumentos enfocavam a necessidade da própria lei. Eles simplesmente assumiram que o mercado é incapaz de definir e proteger os direitos de propriedade. Eles estavam errados.

Neste ensaio, eu argumento que a eliminação do Estado não vai levar ao caos sem lei. Instituições voluntárias vão surgir para efetiva e pacificamente2 resolver as disputas que surjam na vida cotidiana. Não só a lei no mercado vai ser mais eficiente, ela também vai ser mais justa que a alternativa governamental.

Assim como os falcões de direita abraçam a noção orwelliana de que Guerra é Paz, os igualitaristas da esquerda acreditam que Escravidão é Liberdade.3 Os falcões entram em inúmeras guerras para acabar com as guerras, ao passo que os social-democratas se envolvem num roubo maciço — ou "tributação", como eles o chamam — para eliminar o crime.

É hora de abandonar esses paradoxos monstruosos. Não foi preciso um rei para produzir a linguagem, o dinheiro ou a ciência, e não é preciso nenhum governo para produzir um sistema legal justo.

1. Contratos

Primeiro, nós devemos abandonar a idéia de uma mítica "lei da terra". Não precisa haver um único conjunto de leis sujeitando a todos. De qualquer jeito, esse sistema nunca existiu. As leis em cada um dos cinquenta estados são diferentes, e a diferença dos sistemas legais entre os países é ainda maior. Contudo, nós continuamos nossas vidas cotidianas e até mesmo visitamos e fazemos negócios com nações estrangeiras sem muitos problemas.

Todas as ações numa sociedade puramente livre4 seriam sujeitas à contratos. Por exemplo, presentemente é um crime roubar, porque a legislatura diz isso. Um possível empregador sabe que se eu roubar de sua firma, ele pode notificar o governo e ele me punirá.

Mas numa sociedade sem Estado não haveria um conjunto de leis legisladas, nem haveria cortes governamentais ou polícia. No entanto, os empregadores ainda gostariam de ter alguma proteção contra o roubo por seus empregados. Assim, antes de contratar uma pessoa, o empregador o faria assinar um documento5 com cláusulas como "Eu prometo não roubar da Firma Acme. Se eu for pego roubando, como estabelecido pela Agência de Arbitragem X, então eu concordo em pagar qualquer restituição que a Agência X considerar apropriado."

Nós imediatamente vemos duas coisas nesse contrato. Primeiro, ele é completamente voluntário; quaisquer "leis" obrigando o empregado foram reconhecidas por ele antes de tudo. Segundo, a existência da Agência de Arbitragem X assegura a justiça e a objetividade em quaisquer disputas.

Para ver isso, suponha que ela não assegurasse. Suponha que uma grande firma tivesse subornado os árbitros da Agência X, de forma que os empregados preguiçosos (que seriam despedidos de qualquer forma) fossem (falsamente) acusados pelos empregadores de fraude, enquanto a Agência X sempre os julgasse como "culpados". Com esse esquema, a grande firma poderia conseguir milhares de dólares de seus maus empregados antes de os despedir. E já que os infelizes empregados tenham anteriormente concordado em se sujeitar aos resultados da arbitragem, eles não poderiam fazer nada quanto a isso.6

Mas depois de certa consideração, é fácil ver que esse comportamento seria estúpido. O fato de uma agência de arbitragem ter decidido de uma certa forma não faria todos concordarem com ela, assim como as pessoas reclamam das decisões ultrajantes de juízes governamentais. A imprensa iria destacar as decisões injustas e as pessoas perderiam a fé na objetividade das decisões da Agência X. Empregados potenciais pensariam duas vezes antes de trabalhar para a grande firma enquanto for requerido (em seus contratos de trabalho) que as pessoas enviem suas suspeitas à Agência X.

Outras firmas fariam acordos com agências de arbitragem diferentes, de melhor reputação, e os trabalhadores afluiriam para elas. Em breve a firma corrupta e a Agência de Arbitragem X sofreriam enormes penalidades financeiras por seus comportamentos.

Sob a anarquia de mercado, todos os aspectos das relações sociais seriam "regulados" por contratos voluntários. Firmas especializadas provavelmente proveriam formas padronizadas de modo que novos contratos não teriam que ser feitos toda vez que as pessoas fizessem negócios. Por exemplo, se um consumidor comprasse algo em prestações, a loja provavelmente o faria assinar algo que dissesse alguma coisa do tipo "Eu concordo com as provisões da edição de 2002 dos Procedimentos Padronizados de Pagamento Deferido, publicados pela firma legal Ace."

Especialistas

Sob esse sistema, especialistas em direito fariam as "leis da terra", não corruptos e ineptos políticos. E esses especialistas seriam escolhidos em aberta competição com todos os rivais. Atualmente nós podemos comprar manuais "definitivos" para escrever papers ou dicionários da língua inglesa. O governo não precisa estabelecer os "especialistas" nessas áreas. Seria da mesma forma com os contratos legais privados. Todo mundo sabe das "regras" de gramática, assim como todo mundo saberia o que é "legal" e o que não é.

Assassinato

É claro, uma das estipulações mais básicas de qualquer relacionamento contratual — entrar num shopping ou mesmo viver num conjunto habitacional — seria a forte proibição do assassinato. Em outras palavras, todos os contratos desse tipo teriam uma cláusula dizendo "Se eu for julgado culpado de assassinato, eu concordo em pagar $y milhões aos herdeiros do falecido". Naturalmente, ninguém quereria assinar esse contrato a não ser que ele tivesse certeza de que os procedimentos processuais usados para determinar sua culpa ou inocência tivesse uma forte presunção de inocência; ninguém quereria ser considerado culpado de um assassinato que não cometeu. Mas por outro lado, os procedimentos teriam que ser desenhados de forma que houvesse ainda uma boa chance de que pessoas culpadas fossem julgadas, já que ninguém quereria ir em shoppings em que assassinatos não são punidos.

E, já que todos os contratos desse tipo (exceto possivelmente em áreas muitos excêntricas frequentadas por pessoas que gostam de viver perigosamente) conteriam essas cláusulas, se poderia dizer que o "assassinato é ilegal" em toda a sociedade anarquista, embora as regras de evidência e penalidades possam diferir de área para área. Mas isso não difere do nosso presente sistema7, e sem dúvida o "assassinato é ilegal" nos Estados Unidos atualmente.

Lucratividade do Sistema

A beleza desse sistema é que os desejos concorrentes de todos são levados em conta. O mercado resolve esse problema todo dia em relação a bens e serviços. Por exemplo, seria muito conveniente para os consumidores se uma delicatessen abrisse 24 horas por dia. Mas por outro lado, essas longas jornadas seriam tediosas para os trabalhadores. Então o sistema de mercado de lucro e prejuízo determina as horas "corretas" de operação.

Da mesma forma, nós vimos acima como as regras evidenciárias seriam determinadas sob um sistema de leis privado. Uma vez que as pessoas se submeteriam contratualmente às regras de uma certa agência de arbitragem, a agência precisaria de uma reputação por objetividade e justiça junto aos acusados. Mas por outro lado, os donos de lojas, firmas, aluguéis de carros, etc, quereriam meios de restituição no evento de roubo, e assim as agências de arbitragem não poderiam ser lenientes demais. Como em relação às horas de operação de uma loja, os procedimentos legais também seriam decididos com base no teste de lucro e prejuízo. Talvez houvessem júris, talvez não. Nós não podemos prever, da mesma forma que não podemos dizer a priori quantos triciclos "deveriam" ser feitos neste ano; nós deixamos o mercado tomar conta disso automaticamente.

II. Seguros

O sistema contratual descrito acima parece funcionar bem, exceto por um incômodo problema: como as pessoas poderiam pagar essas multas ultrajantes? Claro, algum pode assinar um pedaço de papel, prometendo restituir seu empregador se for pego roubando. Mas suponha que ele roube de qualquer jeito e que seja considerado culpado pela agência de arbitragem, mas não tem nenhum dinheiro. O que aconteceria?

Bom, como funciona o nosso sistema de danos automáticos? Hoje em dia, se eu bater na lateral do carro de alguém, eu preciso pagar uma dura penalidade. Ou, em vez disso, minha companhia de seguros paga.

Seria da mesma forma com todos os delitos e crimes sob o sistema que eu descrevi. Uma agência de seguros agiria como um garantidor (ou co-assinante) dos contratos de um cliente com várias firmas. Assim como um banco utiliza experts para pegar o dinheiro dos depositantes e alocá-lo eficientemente para aqueles que querem pegá-lo emprestado, da mesma forma experts nas companhias de seguro determinariam o risco de um certo cliente (i.e., a probabilidade de que ele vá violar os contratos roubando ou matando) e cobrará um prêmio apropriado. Assim, as outras firmas não teriam que manter registros de todos os clientes e empregados; a única responsabilidade das firmas seria se assegurar que todos com quem lidassem tivessem uma agência de seguros de reputação.

Sob esse sistema, as vítimas de um crime são sempre restituídas, imediatamente. (Contraste isso com o sistema governamental, onde as vítimas normalmente não ganham nada além da satisfação de ver o criminoso atrás das grades.) Haveria também incentivos para que as pessoas se comportassem responsavelmente. Assim como motoristas descuidados pagariam maiores prêmios por seguros de carro, criminosos recorrentes teriam que pagar prêmios maiores por seus contratos de seguro.

E por que a pessoa com tendências criminosas se importaria com sua companhia de seguros? Bom, se ele parasse de pagar seus prêmios, sua cobertura seria suspensa. Sem ninguém para fiar suas obrigações contratuais, essa pessoa seria um cliente ou empregado muito ruim. As pessoas não o contratariam nem confiariam nele para andar por um mercado chinês, já que não haveria nenhum recurso "legal" se ele fizesse alguma coisa "criminosa". Para permanecer na sociedade, seria extremamente útil manter a própria cobertura de seguros, pagando sempre os prêmios. E isso significa que seria do maior interesse das pessoas não se envolverem em atividades criminosas, para manter os prêmios baixos.

Admitidamente, esses argumentos parecem extravagantes. Mas eles não são mais implausíveis que o moderno sistema de cartões de crédito. As pessoas têm enormes linhas de crédito disponíveis para elas, às vezes apenas preenchendo um formulário, e é extremamente fácil fraudar cartões de crédito. Um gastador pode contrair uma enorme dívida e simplesmente se recusar a pagá-la, e contudo nada físico vai acontecer com ele. Mas a maioria das pessoas não se comporta dessa forma irresponsável, porque elas não querem arruinar seus históricos de crédito. Se fizerem isso, elas sabem que ficarão para sempre privadas dessa maravilhosa ferramenta da sociedade capitalista.

III. Prisões

Nós agora estabelecemos que um sistema de leis voluntário, contratual, pode ser imaginado teoricamente e até mesmo funcionaria numa sociedade de pessoas que seguem os próprios interesses mas são em última análise racionais.

Mas e os casos realmente difíceis? E o ladrão de bancos incorrigível ou o assassino maluco? Certamente sempre haverá indivíduos desviados, anti-sociais, que, por maldade ou ignorância, ignoram os incentivos e cometem crimes. Como poderia um sistema de anarquia de mercado lidar com tais pessoas?

Primeiro, tenha em mente que onde quer que se estiver pisando numa sociedade puramente libertária8, se está numa propriedade privada. Esse é o jeito pelo qual a força poderia ser exercida sobre os criminosos sem violar os direitos naturais deles.

Por exemplo, o contrato9 de um cinema teria uma cláusula como "Se eu for considerado culpado de um crime por uma respeitada agência de arbitragem [talvez listada num Apêndice], eu libero o dono do cinema de qualquer responsabilidade se homens armados vierem me remover de sua propriedade".

Então nós vemos que não é uma contradição usar a força para capturar fugitivos numa sociedade completamente voluntária. Todos esses usos seriam autorizados pelos próprios recipientes antecipadamente.10

Mas para onde esses foras-da-lei seriam levados, uma vez que tivessem sido capturados? Firmas especializadas se desenvolveriam, oferecendo análogas altamente seguras às presentes prisões. Contudo, as "prisões" na anarquia de mercado competiriam umas com as outras para atrair criminosos.

Considere: nenhuma companhia de seguros cobriria um serial killer se ele tentasse conseguir um trabalho na biblioteca local, mas eles lidariam com ele se ele concordasse em viver num prédio seguro com vigilância de perto. A companhia de seguros se certificaria de que a "prisão" em que ele estivesse fosse bem gerida. Afinal, se a pessoa escapasse e matasse novamente, a companhia seria considerada culpada, já que ela promete restituir quaisquer danos que seus clientes cometerem.

Por outro lado, não haveria crueldade indevida contra os prisioneiros nesse sistema. Embora eles não tivessem chance de escapar (ao contrário das prisões do governo), eles não seriam espancados por guardas sádicos. Se fossem, eles simplesmente mudariam para uma prisão diferente, assim como viajantes podem mudar de hotel se acharem os funcionários mal-educados. Novamente, a companhia de seguros (que cobre a pessoa violenta) não se importa com qual prisão seu cliente escolhe, contanto que seus inspetores tenham determinado que a prisão não o deixará escapar.

IV. Dúvidas

Embora superficialmente coerente e funcional, o sistema proposto de lei de mercado certamente gerará ceticismo. Com interesse na brevidade, eu abordarei algumas preocupações comuns (e válidas).11

"E quanto a alguém que não tenha seguro?"

Se um indivíduo não tivesse cobertura de seguros, outras pessoas não teriam recurso garantido se ele danificasse ou roubasse a propriedade delas. Esse indivíduo seria visto, portanto, com suspeita, e as pessoas relutariam em lidar com ele, a não ser em transações que envolvessem pequenas somas. Ele provavelmente não seria capaz de conseguir um emprego em tempo integral, um empréstimo bancário ou um cartão de crédito. Muitas áreas residenciais e comerciais provavelmente requereriam que todos os visitantes carregassem documentos válidos antes até mesmo de deixá-los entrar.12

Então nós vemos que aqueles que não tivessem seguros teriam suas opções, incluindo a liberdade de movimento, altamente restritas. Ao mesmo tempo, os prêmios pelo contrato básico de seguros, pelo menos para aquelas pessoas sem histórico criminal, seriam bastante baratos.13 Assim, não haveria muitas pessoas sem algum tipo de seguro. É verdade, algumas pessoas ainda assim cometeriam crimes e não teriam companhias de seguro para pagar os prejuízos, mas esses casos ocorrem em qualquer sistema legal.

Além do mais, uma vez que alguém tivesse cometido (sem seguro) um crime sério, ele seria perseguido por detetives, assim como seria sob o sistema governamental. E se esses detetives privados (muito mais eficientes) o encontrassem a qualquer tempo numa propriedade normal, eles teriam total direito de prendê-lo.14

Críticos normalmente descartam a lei privada alegando que as disputas entre agências de execução levariam ao combate — muito embora isso aconteça com os governos a toda hora! Na verdade, os incentivos para a resolução pacífica de disputas seriam muito maiores na anarquia de mercado que no sistema presente. Combate é muito caro, e as companhias privadas tomam muito melhor conta de seus ativos que os oficiais do governo tomam das vidas e propriedades de seus súditos.

De qualquer forma, aqueles que se envolvessem em "guerras" numa sociedade livre seriam tratados como quaisquer outros assassinos. Ao contrário dos soldados do governo, mercenários privados não receberiam privilégios especiais para agir violentamente. As agências que interpretassem a lei não seriam as mesmas que a aplicariam. Não há mais razão intrínseca para crer em batalhas entre agências de execução privadas15 do que para acreditar em batalhas entre o exército e a marinha do governo.

"A Máfia não vai dominar tudo?"

É paradoxal que o medo do domínio do crime organizado das famílias faça com que as pessoas apóiem o Estado, o qual é a associação mais "organizada" e criminosa da história humana. Mesmo se fosse verdade que sob a anarquia de mercado as pessoas tivessem que pagar pela proteção e eventualmente fossem espancadas, isso seria uma gota no balde comparado à taxação e as mortes nas guerras causadas pelos governos.

Mas mesmo essa é uma concessão muito grande. Pois as máfias conseguem força através do governo, não do livre-mercado. Todos os negócios tradicionalmente associados com o crime organizado — jogo, prostituição, agiotagem, comércio de drogas — são proibidos ou altamente regulados pelo Estado.16 Na anarquia de mercado, verdadeiros profissionais tirariam de competição os indivíduos inescrupulosos.

"Suas companhias de seguro se tornariam o Estado!

Pelo contrário, as companhias privadas que provessem serviços legais na anarquia de mercado teriam muito menos poder do que o governo presentemente possui. Obviamente, não haveria o poder de tributar ou monopolizar o "serviço". Se uma companhia de seguros particular estivesse relutante em pagar reclamações legítimas, isso se tornaria rapidamente conhecido e as pessoas levariam isso em conta quando estivessem lidando com clientes dessa firma sem reputação.17

O medo de que (sob a anarquia de mercado) os indivíduos privados substituiriam os políticos negligencia as verdadeiras causas dos problemas do Estado. Ao contrário dos monarcas feudais, os líderes nas democracias na verdade não possuem os recursos (inclusive humanos) que controlam. Além disso, a duração de seus mandatos (e portanto o controle dos recursos) é muito incerta. Por essas razões, os políticos e outros empregados governamentais não têm muito cuidado em manter o valor (de mercado) da propriedade em suas jurisdições. Acionistas de uma empresa privada, no entanto, tem todo o interesse de escolher empregados e políticas para maximizar a lucratividade da firma.

Todos os horrores do Estados — taxação onerosa, brutalidade policial, guerra total — não são apenas monstruosas, mas altamente ineficientes. Não seria nunca lucrativo para as firmas de seguros e legais anarquistas imitar as políticas estabelecidas pelos governos.18

Crianças

A questão das crianças é uma das mais difíceis. Primeiramente, deixe-nos comentar que, obviamente, pais preocupados apenas sustentariam aquelas escolas e viveriam em apartamentos ou em conjuntos habitacionais onde a proteção de suas crianças fosse prioridade dos empregados.

Além disso, as "proibições" básicas do abuso e negligência dos pais quanto às crianças poderia ser estipulado no contrato de casamento. Além de poder ser um romance, um casamento é em última análise uma parceria entre duas pessoas, e casais prudentes vão oficializar esse arranjo, com todos os seus benefícios e obrigações. Por exemplo, antes de abandonar sua carreira para criar os filhos de um homem, uma mulher pode requerer uma promessa financeira em caso de divórcio (i.e., de dissolução da parceria). Da mesma forma, uma cláusula comum em contratos de casamento poderia definir e especificar penalidades para o tratamento impróprio das crianças.19

Outro ponto a ser considerado é o maior papel da adoção numa sociedade livre. Embora isso choque as sensibilidades modernas, haveria em funcionamento um "mercado de bebês", no qual os privilégios parentais seriam vendidos a quem fizesse a melhor oferta.20 Embora isso pareça absurdo, esse mercado certamente reduziria os abusos às crianças. Afinal, pais abusivos e negligentes são os que mais provavelmente ofereceriam as crianças para adoção quando casais cuidadosos pudessem pagar bem por elas.21

A questão controversa do aborto, assim como quaisquer outros conflitos num sistema de leis privado, seria resolvido por firmas concorrentes que estabelecessem políticas que melhor correspondessem aos desejos dos clientes. Aquelas pessoas suficientemente horrorizadas pela prática poderiam estabelecer uma comunidade fechada na qual todos os residentes concordassem em não abortar e em relatar quem quer que abortasse.22

Registro de Títulos

Na anarquia de mercado, quem definiria os direitos de propriedade? Se alguém der o dinheiro para comprar uma casa, que garantias ele vai ter?

Essa é uma questão complexa, e eu não serei capaz de falar de especificidades, uma vez que a real solução de mercado dependeria das circunstâncias do caso e dependeriam da experiência legal (muito maior que a minha) da comunidade.23 Eu posso, no entanto, fazer algumas observações gerais.

Qualquer que seja (se houver) a natureza abstrata ou metafísica da lei de propriedades, o propósito dos títulos públicos é bastante utilitário; eles são necessários para permitir que os indivíduos efetivamente planejem e coordenem suas interações uns com os outros. Firmas especializadas (talvez distintas de agências de arbitragem) manteriam registros de títulos de propriedade, ou para uma área específica ou para um grupo de indivíduos. O registro de títulos provavelmente seria conseguido através de uma complexa, hierárquica teia dessas firmas.24

O medo de agências-vampiro, declarando-se unilateralmente "donas" de tudo é completamente despropositado. Na anarquia de mercado, as companhias que publicitariam os direitos de propriedade não seriam as mesmas que executariam esses direitos. Mais importante, a competição entre essas firmas proveria verdadeiras "limitações e equilíbrios". Se uma firma começasse a violar as normas estabelecidas e codificadas da comunidade, ela seria tirada dos negócios, assim como um editor de dicionários iria à falência se seus livros contivessem definições impróprias.

Regressão Infinita

Um critico sofisticado pode dizer que minha proposta se sustenta sobre um argumento circular: como podem as pessoas usar contratos para definir os direitos de propriedade se um sistema de direitos de propriedade é necessário para determinar se os contratos são válidos? Afinal, Smith não pode vender a Jones um carro por uma certa soma de dinheiro, a não ser que se esteja estabelecido antecipadamente que Smith seja o justo proprietário do carro em questão (e que Jones seja o dono da soma em dinheiro).25

Para ver a solução, nós precisamos quebrar o problema em duas partes. Primeiro, deveríamos perguntar "Poderia o livre-mercado prover uma base para a interação social?". Eu acredito que as seções anteriores demonstraram isso. Isto é, eu demonstrei acima que se nós tivéssemos um sistema de títulos de propriedade reconhecido por firmas concorrentes, então um sistema contratual que governasse a troca desses títulos formaria uma base estável para a lei privada.

Agora, é uma questão inteiramente diferente perguntar "Como são esses títulos inicialmente definidos e alocados?". Esse é um tópico amplo que será abordado na próxima seção. Mas para lidar com a questão da suposta regressão infinita, consideremos o direito contratual.

O direito contratual é uma área específica do direito, como o direito criminal ou constitucional. É usado, por exemplo, para determinar se um contrato entre duas partes é legalmente obrigatório. Agora, certamente que o direito contratual não pode ser estabelecido num sistema anarquista de direito contratual, porque isso não seria apenas evitar a questão?

Não. As promessas contratuais feitas por indivíduos conteriam as provisões para todas as contingências resolvidas pelo atual direito contratual. Por exemplo, a companhia de seguros que cobrisse um consumidor prometeria: "Nós honraremos quaisquer dívidas que nosso cliente deixe de pagar, posto que as obrigações tenham sido assumidas num contrato válido, de acordo com os termos descritos no panfleto de Direito Contratual Padrão, publicado pela firma legal Ace."

Esse panfleto provavelmente requereria assinaturas com firmas reconhecidas para grandes somas e que os assinantes de um contrato tivessem suficiente idade e sobriedade e que não estivessem cumprindo pena de prisão quando o contrato fosse acordado.26 Assim como todos os elementos da lei privada, as regras exatas que governariam a interpretação de contratos seriam determinadas pelos desejos (possivelmente conflitantes) de todos através do teste de lucro e perda.

Finalmente, mantenha em mente que o juiz final num dado caso é... o juiz. Não importa quão enormes sejam os livros de direito ou quão óbvios os precedentes, todo caso em última análise dependeria da interpretação subjetiva de um árbitro ou juiz que deve dar a sentença.27

Nós não devemos nunca esquecer que estatutos escritos não têm poder a não ser que usados por indivíduos competentes e justos. Apenas num sistema competitivo, voluntário, há qualquer esperança de excelência judicial.

"Como chegamos lá?"

A rota para uma sociedade livre vai variar dependendo da história de uma região, e consequentemente uma só descrição não será suficiente. O caminho tomado pelos anarquistas de mercado norte-coreanos certamente diferirá do curso de indivíduos que pensam parecido nos Estados Unidos. Naquele, a derrubada violenta do regime injusto deve ocorrer, ao passo que no último uma gradual e ordenada erosão do Estado é uma grande possibilidade. O que todas essas revoluções compartilhariam seria um comprometimento da grande maioria a um total respeito pelos direitos de propriedade.

Todas as sociedades, não importa quão despóticos seus governantes sejam, precisam possuir um grau básico de respeito pelos direitos de propriedade, mesmo se esse respeito seja devido ao costume em vez de por conta de uma apreciação intelectual. Todas as pessoas sabem que é um crime estuprar ou matar28, até mesmo estupradores e assassinos.

Essas noções intuitivas universais de justiça constituiriam a base de um sistema de leis privado. Esse acordo disseminado permitiria que direitos mais específicos, contratualmente definidos, evoluíssem.29 O processo seria contínuo, com um estágio de títulos de propriedade e regras legais formando a base que a próxima geração de juízes e acadêmicos sistematizaria e estenderia.

Pessoas comuns entendem o desperdício e a falta de sentido dos conflitos; elas se esforçarão e farão várias concessões para alcançar um consenso. Por exemplo, apesar da ausência de um governo formal, os mineiros que chegavam às corridas do ouro da Califórnia respeitavam as reclamações dos que haviam se estabelecido anteriormente. Para usar um exemplo mais moderno, mesmo os durões interioranos impensadamente respeitam as "regras" de um jogo de rua de basquete, embora não haja um árbitro.30

Na anarquia de mercado, os indivíduos livres, pelo apoio a firmas judiciais e de seguros concorrentes, criariam um sistema legal humano e justo. Aqueles indivíduos anti-sociais que atrapalhassem o processo (violando gritantemente os óbvios direitos de propriedade dos outros) seriam combatidos pelas formas descritas anteriormente.

Positivismo Legal?

Alguns leitores podem se perguntar como eu posso propor uma substituição do sistema de "justiça" do Estado sem ter oferecido uma teoria racional da base e natureza dos direitos legítimos de propriedade.

A resposta é simples: eu não tenho tal teoria. Contudo, eu ainda posso dizer que o sistema de mercado de lei privada funcionaria mais efetivamente que a alternativa estatal e que as objeções mais comuns à anarquia são infundadas.

Há uma desconfiança geral em deixar o mercado "determinar" algo tão crucial quanto, digamos, proibições ao assassinato. Mas "o mercado" é apenas uma forma mais rápida de falar da totalidade das interações econômicas de agentes individuais livres. Permitir que o mercado estabeleça regras legais na verdade significa que ninguém usa a violência para impor sua própria visão sobre todos os outros.31

O assassinato não é errado meramente porque não passa no teste de mercado; é claro que não. Mas sua imoralidade intrínseca terá expressão através das forças do mercado. Nós todos podemos concordar — contratualmente — em não matar e em se sujeitar às decisões tomadas por um árbitro se formos processados por tal crime. Dessa forma, nós sabemos que não estamos violando os direitos de ninguém.

Agora, após termos alcançado esse acordo e quando estivermos seguros de nossas vidas, nós podemos deixar os filósofos e teólogos discutir por que o assassinato é errado. Acadêmicos legais que ofereçam explicações a priori de uma lei justa certamente teriam lugar numa anarquia de mercado; afinal, seus tratados podem influenciar as decisões dos juízes. Contudo, neste ensaio, eu enfoco as forças de mercado que moldarão a lei privada, não no conteúdo de tal lei.32

V. Aplicações

Até aqui eu me concentrei nas questões centrais de uma discussão teórica da lei privada. Agora, eu gostaria de ilustrar a versatilidade desse sistema numa grande variedade de áreas e contrastar sua performance com a alternativa governamental monopolística.

Segurança de Produtos

Uma das acusações mais comuns contra o laissez-faire puro é que um mercado completamente desregulado deixaria os consumidores à mercê dos cruéis empresários. Nos dizem que sem a benevolente ação governamental, a comida seria envenenada, as televisões explodiriam e os prédios cairiam.33 É verdade, tais críticos podem conceder, que no longo prazo, as piores companhias eventualmente sairiam do mercado. Mas certamente alguém que vende um hambúrguer envenenado deveria ser imediatamente punido por isso, para proteger futuros consumidores.

Como em outras áreas da lei, eu acredito que o mercado lidaria com esses tipos de casos através de promessas contratuais. Quando um consumidor comprasse algo, parte do acordo seria algo como "Se este produto causar danos, como determinado por uma agência de arbitragem de reputação, o consumidor tem direito a restituição". E, como os indivíduos provavelmente precisariam ser cobertos por grandes companhias de seguros antes que qualquer um fizesse negócios com eles, também os negócios precisariam ser segurados contra possíveis processos, se quisessem atrair os consumidores.34

Nós imediatamente vemos que esse sistema evita os cenários macabros desenhados pelos proponentes da regulação governamental. Tomemos o caso das viagens aéreas. A Federal Aviation Administration [N.T.: "Administração Federal da Aviação"] "garante" que aviões tiveram manutenção apropriada, que os pilotos descansaram, etc. Então os consumidores não precisam se preocupar com o caso de seus aviões caírem. Em contraste, muitas pessoas alegam, sob um livre mercado os consumidores teriam que manter estatísticas de quantas quedas cada linha aérea teve e teriam que ser especialistas em manutenção de aviões para saber quais companhias seriam as melhores.

Mas isso é nonsense. Tudo que um passageiro precisa fazer é se assegurar de que quando comprar uma passagem de avião, parte do que ele comprar seja uma promessa (coberta por uma companhia de seguros) que diga: "Se você for morto num acidente de avião, nossa companhia aérea pagará a seus herdeiros $y milhões." Agora, uma vez que as companhias de seguro podem perder milhões se os aviões caírem, serão elas que contratarão inspetores treinados, que manterão relatórios meticulosos de manutenção, etc. Elas diriam às linhas aéreas: "Sim, nós cobriremos seus contratos com os consumidores, mas apenas se você seguir nossos procedimentos de segurança, se permitir que nossos inspetores averiguem seus aviões, trabalhem em processos de pilotagem mais adequados, etc., e se nós os pegarmos violando seu acordo, nós os multaremos de acordo." Já que ela quer maximizar os lucros, a companhia de seguros pagaria de boa vontade por esforços preventivos se isso levasse a maiores economias de pagamentos esperados de processos por conta de mortos em acidentes.

Isso contrasta radicalmente com o presente sistema. A FAA também estabelece parâmetros, mas quais são seus incentivos? Se houver um acidente de avião, a própria FAA vai receber mais recursos, uma vez que todos vão dizer que o acidente mostra como é terrível o "livre-mercado" nas linhas aéreas. Agências governamentais vão sempre mal-gerenciar seus recursos, para que haja sempre gerentes de nível médio demais e inspetores insuficientes. Mais importante, uma vez que não há competição, não há referência com a qual comparar o desempenho da FAA. Um mecânico comum pode ter uma grande idéia de como melhorar a segurança nos aviões, mas a burocrática FAA levaria anos para implementá-la.

Licenciamento Profissional

Relacionando-se estreitamente com a área da segurança dos produtos está o licenciamento profissional. Vamos usar o exemplo da medicina. Sem a regulação governamental, acreditam muitos, os pacientes estariam à mercê de charlatães. Os consumidores ignorantes iriam para um neurocirurgião qualquer que cobrasse o menor preço e seriam trucidados na mesa de operação. Para evitar isso, o governo benevolente deve estabelecer parâmetros — com a força das armas — para limitar aqueles que entram na profissão médica.

Isso, claro, é nonsense. Organizações voluntárias provavelmente surgiriam, permitindo somente que médicos qualificados entrassem em suas fileiras. Consumidores preocupados então procurariam apenas os médicos dessas organizações de reputação. Antes de se submeterem a procedimentos de risco ou de ingerirem as drogas prescritas, os pacientes requereriam promessas contratuais de restituição em caso de dano. Neste caso, seriam novamente as companhias de seguro que se certificariam de que os médicos que estão cobrindo são de fato qualificados. Uma vez que elas perderiam milhões com processos por erros médicos, as companhias de seguros seriam bastante cuidadosas ao estabelecer seus parâmetros.

Esse sistema seria preferível ao presente. Como ela é atualmente, a American Medical Association [N.T.: "Associação Médica Americana"] é pouco mais que um sindicato glorificado, que exige enorme conhecimento e treinamento para artificialmente restringir o número de médicos para elevar seus salários (e os custos dos planos de saúde em geral). Sem seu monopólio, a AMA seria incapaz de limitar o crescimento de terapias "alternativas", como a de ervas, que atrapalham a cômoda aliança das grandes companhias farmacêuticas, dos hospitais e do governo.

É necessário perceber também que os incentivos da Food and Drug Administration [N.T.: "Administração de Alimentos e Remédios"] a tornam conservadora demais. Se as pessoas morrem por causa de um novo remédio que a FDA aprovou, a FDA será culpada. Mas se as pessoas morrem porque a FDA não aprovou um novo remédio, ela não será responsabilizada; a própria doença será culpada. Consequentemente, muitos remédios que poderiam potencialmente salvar vidas estão fora do alcance dos pacientes. Num mercado puramente livre, os pacientes poderiam tomar quaisquer drogas que quisessem.

Controle de Armas

Eu sei que muitos libertários acham certos aspectos de meu sistema pouco animadores. Sem garantias incondicionais dos direitos abstratos, parece que haverá sempre um risco de que o Estado reapareça.

Em vez de discutir esse tipo de questão, eu vou dar o melhor exemplo de que posso pensar para demonstrar a diferença entre a abordagem libertária convencional e a minha: controle de armas. Como nós veremos, eu não acho que minha abordagem seja inconsistente com o credo libertário, mas eu penso que ela (pelo menos inicialmente) deixará muitos libertários desconfortáveis.

Os argumentos padrão quanto ao controle de armas são assim: oponentes dizem que o controle de armas vai deixar as pessoas indefesas contra criminosos e colocá-las à mercê de seus governantes; somente quando alguém de fato usou sua arma contra inocentes a lei pode se intrometer. Defensores do controle de armas, no entanto, argumentam que essa posição é dogmática demais; certamente algumas medidas preventivas são justificadas tendo em vista o interesse público.

Da mesma forma que na maioria dos debates dentro do contexto do sistema legal governamental, eu penso que ambos os lados têm argumentos legítimos. Certamente nós não podemos confiar no governo para nos proteger uma vez que ele nos tenha desarmado. Mas por outro lado, eu me sinto um pouco estúpido defendendo que as pessoas possam armazenar armas nucleares em seus porões. (Uma interpretação estrita de muitos argumentos libertários significaria exatamente isso.) Felizmente, o sistema de leis privado que eu descrevi nos permite evitar esse aparente "tradeoff".

Lembre-se de que as penalidades por danos e assassinatos seriam estabelecidas por contratos, cobertos por companhias de seguro. As pessoas permitem que Joe Smith entre em suas propriedades porque sabem que se ele machucar alguém, ou ele vai diretamente pagar os danos ou sua companhia de seguros vai fazer isso. A companhia de seguros ganha seu dinheiro cobrando prêmios apropriados ao cliente individual. Se Joe Smith foi considerado culpado no passado de um comportamento violento, seus prêmios de seguro serão maiores.

Mas há outros fatores que uma companhia de seguros levaria em consideração quando fosse estabelecer seus prêmios, além do comportamento passado. E um desses fatores certamente seria: que tipo de armas esse cliente mantém consigo em casa? Afinal, se a companhia de seguros vai concordar em pagar, digamos, $10 milhões para os herdeiros de quem for que Joe Smith matar, a companhia estará muito interessada em saber se Smith possui uma escopeta — e obviamente armas nucleares — em seu porão. Alguém que possua armas tem muito maior probabilidade de machucar os outros, no que concerne à companhia de seguros, e assim seus prêmios serão mais altos. Na verdade, o risco de um cliente que possuísse armas nucleares (ou químicas, biológicas, etc) seria tão alto que provavelmente não seria oferecido nenhum plano.

Essa abordagem é superior à do governo. Armas verdadeiramente perigosas seriam restritas à indivíduos que desejassem pagar altos prêmios; crianças não poderiam comprar bazucas no supermercado local. Por outro lado, não haveria a situação que temos agora com o controle de armas governamental. Nós não precisaríamos temer que todas as pistolas fossem banidas, já que as companhias de seguros quereriam lucrar e seria muito mais lucrativo permitir que as pessoas tivessem essas armas e pagassem prêmios um pouco mais altos.35

Como em relação a todos os contratos sob o meu sistema, aqueles que "regulassem" as armas seriam completamente voluntários, não envolvendo violação dos direitos libertários. A companhia de seguros não está forçando as pessoas a abrirem mão de suas bazucas. Tudo o que ela diria seria: se você quer que nós cubramos seus contratos com os outros, você não pode ter uma bazuca. As companhias de seguros são as justas proprietárias do próprio dinheiro, e, assim, está perfeitamente nos direitos delas requerer esse tipo de coisa.36

Isso é muito mais preferível ao sistema de governo, que não tem responsabilização. Se os políticos banirem as armas e tornarem milhares de pessoas vítimas do crime, nada acontece a eles. Mas se uma companhia de seguros fizer exigências não-razoáveis a seus clientes, eles mudarão para uma companhia diferente e ela sairá rapidamente do mercado.

Criminosos Perigosos

O suposto tradeoff entre a liberdade individual também é exemplificado pelos debates quanto a "tecnicalidades" legais. Os conservadores gostam de reclamar dos casos em que um sabido assassino é libertado por um juíz sensível, simplesmente porque a polícia o coagiu a confessar ou esqueceu de ler os direitos do suspeito. Liberais (como Alan Dershowitz) respondem que embora esses casos sejam infelizes, eles são necessários para manter a polícia na linha.

Da mesma forma que em relação ao controle de armas, eu sou simpático a ambos os lados nesse debate, e novamente eu penso que meu sistema pode evitar ambos os tipos de absurdidades. Para ver isso, suponhamos que através de algum erro, um assassino claramente "culpado" tecnicamente não violou quaisquer provisões contratuais. Ou, suponha que um árbitro — que apenas ouviria casos de assassinato por causa da excelência passada de suas decisões — por alguma razão desse uma sentença ultrajante, considerando uma pessoa inocente do assassinato, apesar de esmagadora evidência em contrário.37

Já que ele foi tecnicamente absolvido, o assassino não teria que pagar restituição aos herdeiros de sua vítima. Contudo, as regras que governam esse episódio seriam rapidamente revisadas para evitar sua recorrência; companhias privadas estariam sob muito maior pressão que governos monopolísticos face a tal má publicidade.

Há outra diferença. Sob um sistema governamental, alguém absolvido por conta de uma tecnicalidade não tem nenhum prejuízo. Mas sob o sistema de lei privado que eu descrevi, a companhia de seguros do assassino poderia aumentar os prêmios cobrados. Não importaria se o cliente foi realmente considerado culpado de um crime; a única preocupação da companhia de seguros seria com a probabilidade de que ele fosse considerado culpado (de um crime diferente) no futuro, porque ela teria que pagar os danos.38

Essa análise também resolve o problema da liberdade condicional. Embora a maioria dos crimes fosse envolver restituição financeira em vez de aprisionamento, ainda haveriam indivíduos perigosos demais para serem deixados soltos. As companhias de seguro determinaria esse risco. Enquanto uma companhia desejasse pagar por quaisquer danos que um criminoso pudesse causar no futuro, as pessoas poderiam oferecer trabalho a ele, deixá-lo alugar um quarto, etc. A reabilitação, assim, seria do maior interesse financeiro das companhias, para aumentar a própria quantidade de clientes.

Por outro lado, indivíduos realmente perigosos não seriam soltos em condicional. Atualmente, o governo tem psicólogos e outros "especialistas" para decidir quando estupradores e assassinos deveriam voltar às ruas. Uma vez que eles não podem ser responsabilizados, esses intelectuais frequentemente testam suas teorias com as vítimas infelizes de criminosos reincidentes.39

VI. Conclusão

Este ensaio delineou a mecânica de um sistema legal puramente voluntário, de mercado. A tese principal é a de que a competição e a responsabilização forçariam verdadeiros especialistas a assumirem as decisões importantes que precisam ser tomadas em qualquer sistema legal. É um mito estatista o de que a justiça precisa ser produzida por uma instituição monopolística de violência organizada.

Os argumentos deste ensaio são admitidamente incompletos; certamente maior elaboração é necessária antes que um movimento rumo à anarquia de mercado seja viável. Contudo, eu peço que o leitor resista à tentação de descartar minhas idéias como "impraticáveis" sem antes especificar em qual sentido o sistema legal do governo "funciona".



1 Este ensaio é baseado em três artigos originalmente publicados no Anti-State.com.

2 Mais precisamente, as disputas serão resolvidas de forma relativamente pacífica; a força pode ser ocasionalmente necessária. Embora o anarquismo de mercado não seja o mesmo que pacifismo, nós notamos que o verdadeiro pacifismo — a recusa de se envolver em violência — implica o anarquismo, uma vez que toda ação do Estado é baseada na (ameaça de) violência.

3 No original, "Liberdade é Escravidão". George Orwell, 1984 (Nova York: Signet Classics, 1984), p. 7.

4 Uma sociedade livre é aquela na qual os direitos de propriedade são (geralmente) respeitados. A existência de um Estado — uma instituição que usa a força para se colocar acima dos direitos de propriedade — assim impede a liberdade, como nós usaremos o termo.

5 Eu devo me apressar em notar que o sistema legal de mercado que eu descrevo não é totalmente congruente com a visão de outros autores anarcocapitalistas. Eles acreditam que o sistema "justo" de direitos de propriedade é dedutível axiomaticamente e que uma lei objetivamente válida será descoberta e executada pelas firmas privadas. Para uma excelente introdução, veja Linda e Morris Tannehill, The Market for Liberty (Nova York: Laissez-Faire Books, 1984); e Murray N. Rothbard, For a New Liberty (Nova York: Collier, 1978).

6 Um processo de apelação pode ser incluído no procedimento de arbitragem, mas assim a grande firma poderia apenas subornar esses juízes também.

7 Por exemplo, apenas alguns estados têm pena de morte.

8 Neste contexto, libertário implica respeito pelos direitos "naturais". O credo libertário é o axioma da não-agressão, isto é, que é ilegítimo iniciar a força. Embora a anarquia de mercado (como eu a descreverei) não se baseie no libertarismo, eu argumentarei que ela é (pela maior parte) compatível com essa filosofia. As divergências entre os dois são, acredito eu, pontos fracos da posição libertária.

9 Mesmo que não fosse assinado literalmente em toda visita, o acordo seria entendido implicitamente.

10 É claro, se alguém tentasse simplesmente entrar na propriedade de outra pessoa sem acordar nenhuma obrigação contratual, então o dono teria total justificação para usar a força para expulsá-lo. Embora isso possa parecer unilateral, essa possibilidade seria pelo menos codificada e publicitada. Mais a frente lidaremos com o problema de estabelecer as fronteiras de propriedade.

11 Muitos desses pontos foram inspirados por frutíferas discussões com Matt Lasley, David Pinholster, Chris Redwood, Stephen Carville, Stephan Kinsella e Dan Mahoney. Contudo, as objeção não necessariamente refletem as opiniões desses pensadores.

12 Essa afirmação nos faz imaginar os horrores dos papéis de identificação e pedágios. Contudo, os abusos do Estado não devem descreditar as válidas preocupações dos proprietários. Como argumentado mais notavelmente por Hans-Hermann Hoppe, os indivíduos não possuem uma inerente "liberdade de movimento". Se os proprietários desejam restringir as pessoas que viajam em suas ruas, é da prerrogativa deles. Por outro lado, numa sociedade anarquista estabelecida, os consumidores não mostrariam a identidade toda vez que entrassem na maioria das lojas, da mesma forma que na nossa presente sociedade as pessoas não fazem contratos de trabalho toda vez que contratam o filho do vizinho para cortar a grama do jardim.

13 Repetindo: sob esse sistema, todos comprariam seguros contra homicídio, assim como hoje em dia os cirurgiões compram seguros contra erros médicos; a companhia de seguros promete compensar os herdeiros de qualquer um morto por seus clientes. Uma vez que a probabilidade de um indivíduo (sem passagem pela polícia) ser condenado de assassinato no próximo ano é muito pequena, seu prêmio também seria pequeno. Se os estatísticos da companhia estimarem que um cliente potencial tem, digamos, apenas uma chance em um milhão de matar no próximo ano e se as restituições normais por assassinato sejam de $10 milhões, então a companhia precisaria apenas cobrar $10 por ano para igualar o risco.

14 Como explicado na seção III, a maioria das propriedades teriam uma cláusula na qual todos os visitantes concordassem em ser presos se fossem perseguidos por uma agência de arbitragem de reputação.

15 Esta afirmação não vale para os sistemas legais privados (elaborados por outros anarcocapitalistas) nos quais as agências unilateralmente punem quem quer que prejudique seus clientes. Em tal sistema, a ausência de um monopólio criaria um problema teórico adicional para o defensor das agências de defesa privadas. Contudo, mesmo assim os incentivos a uma resolução pacífica das disputas legítimas são tremendos.

16 As máfias também são fortalecidas pelos sindicatos, os quais (em suas formas modernas) podem ser qualquer coisa, mas não organizações voluntárias.

17 Pode ser verdade que, presentemente, as companhias de seguros são burocráticas e autoritárias. Mas eu penso que isso tem mais a ver com seus relacionamentos com o sistema legal do governo do que com a própria natureza delas. Sim, as companhias de seguros não gostam de pagar restituições, mas as pessoas não gostam de ir trabalhar todo dia também. Isso não significa que o sistema de trabalho livre não seja um sistema viável; se as pessoas são preguiçosas, elas são despedidas. E se uma companhia de seguros não cumpre suas promessas, eventualmente ela sairá do mercado.

18 Para argumentar, suponhamos (bastante implausivelmente) que todos concordassem em vender suas próprias terras a um único indivíduo, que então se tornaria o senhorio de toda a população, e que, como parte do arrendamento, todos concordassem em dar ao senhorio o poder de "tributar" as rendas. Mesmo assim, esse senhorio nunca colocaria o nível de impostos além do "ponto Laffer", i.e., o ponto que maximizasse a receita. Mas porque é influenciado por motivos não-pecuniários, entretanto, o Estado não respeita nem mesmo essa sensata regra.

19 Esse mecanismo só funciona, é claro, se pelo menos um dos parceiros estiver preocupado com o bem-estar das crianças futuras. Porém, isso seria suficiente para a maioria dos casos, já que certamente bem poucos casais sonham em abusar dos filhos.

20 Eu estou propositadamente evitando a questão de se os pais deveriam legalmente "possuir" seus filhos. Enquanto uma criança estivesse voluntariamente com seus pais, "vivendo sob o teto deles", eles poderiam, claro, estabelecer quaisquer regras que quisessem. O único problema surge quando uma criança foge e não deseja retornar. Eu, pessoalmente, sou simpático à noção de que se a criança pode se sustentar, os pais não podem forçá-la a retornar para casa.

21 Essas soluções voluntárias seriam muito mais preferíveis às do governo, nas quais "assistentes sociais" mal-informados e frequentemente arrogantes dividem famílias e colocam as crianças no horrível sistema de orfanatos.

22 Isso não evitaria que outros formassem uma comunidade na qual o aborto fosse legal, é óbvio.

23 Minha posição pode parecer vaga, mas imagine que um economista cubano aconselhe Castro a abolir o socialismo e permitir que o livre-mercado se desenvolva. O economista deve prever antecipadamente se e quantos shopping centers vão existir?

24 Por exemplo, uma firma pode emitir títulos de terra para uma cidade inteira, mas delegar a delimitação dos respectivos direitos de dois vizinhos a uma outra firma especializada em questões residenciais.

25 O leitor melhor informado perceberá que essa objeção — e sua solução — são similares à suposta regressão infinita envolvida na explicação da utilidade marginal da demanda por moeda.

26 O purista pode objetar que essa solução é insuficiente. Afinal, eu estou simplesmente assumindo que as pessoas sabem o que o conceito de um contrato é. Dessa acusação eu sou culpado. Como mencionado no prefácio, meu propósito neste ensaio não é "provar" a superioridade ética da lei de mercado. Apesar de afirmações normativas ocasionais, eu na verdade só estou descrevendo o mundo que eu vislumbro sob a anarquia de mercado. Nesse mundo, eu não prevejo que as pessoas terão problemas em adotar a convenção dos contratos (mesmo sem definição e justificação filosoficamente apropriadas), assim como eu não acho que elas precisam ser versadas em teoria econômica antes de usarem o dinheiro.

27 Num sistema legal privado, ainda haveriam leis publicitadas e aderência às precedentes, pois isso permitiria uma maior previsibilidade das decisões e, portanto, maior apelo junto aos consumidores.

28 É claro, o maior obstáculo do anarquismo é convencer as pessoas de que matar é errado mesmo quando "deputados" eleitos o ordenam.

29 Para ilustrar: suponha que a distribuição deste livro faça com que todo cidadão americano apóie o anarquismo de mercado. As firmas privadas surgiriam para codificar os títulos de propriedade que eram previamente regulados pelas agências do governo. Seria "óbvio" que as pessoas retivessem a propriedade de suas casas (e hipotecas), carros, etc. Essa estrutura básica de propriedade então permitiria uma solução voluntária, contratual, aos problemas mais difíceis, como o de estabelecer títulos nos projetos habitacionais do governo (uma vez que tanto os inquilinos quanto os pagadores de impostos podem reclamar legítima propriedade).

30 O leitor pode considerar esse um mau exemplo, já que, afinal, as faltas são mais flagrantes em quadras de rua do que, digamos, num jogo da NBA. Mas esse é o ponto: ainda existe algo chamado de falta (e outras regras) reconhecidas pelo transgressor num jogo de rua; ele simplesmente vai negar que cometeu uma. (Para um exemplo diferente, nenhum jogador diria que seu arremesso valeu dez pontos.)

Agora, a solução do mercado para esse tipo de ambiguidade e viés, para jogos considerados importantes o suficiente para valerem os custos e problemas extras, é apontar árbitros profissionais para aplicar a "lei" (as quais eles também respeitam impensadamente). Note que em nenhum ponto um monopólio violento é necessário para chegar a esse resultado ordenado.

31 Já que eu não estou defendendo o pacifismo, essa acusação de violência pode parecer hipócrita. Contudo, o Estado precisa da ameaça de violência contra pessoas admitidamente inocentes. Se uma pessoa (a qual todos concordam que não é um criminoso) abrisse uma firma legal ou de seguros que infringisse o monopólio do Estado, ele a puniria.

32 Uma analogia pode ser útil: por muitas razões, eu me oponho à educação pública e defendo sua imediata abolição. Eu tenho bastante confiança de que as escolas privadas forneceriam excelente educação para todas as crianças, ricas e pobres. Agora, eu digo isso mesmo não podendo construir uma teoria a priori de uma educação apropriada. No entanto, eu tenho confiança de que o sistema de mercado será melhor que a solução estatal, muito embora eu não possa listar as condições necessárias e suficientes para uma boa qualidade (neste contexto). E, é claro, nada garante que a solução de mercado será ótima; afinal, se os pais de uma certa cidade fossem perversos ou estúpidos, os incentivos de mercado levariam ao surgimento (do que consideraríamos) um horrível currículo.

33 Eu noto de passagem que televisões realmente explodiram na União Soviética e que muitos prédios residenciais realmente caíram na estatista Turquia após um brando terremoto.

34 Se um indivíduo gostasse de viver perigosamente, ele seria perfeitamente livre para comprar um computador de uma firma que não tivesse seguros. Mas se algo desse errado, seria muito mais difícil conseguir seu dinheiro de volta. Seria, assim, do maior interesse da maioria das pessoas apenas fazer negócios com companhias que tivessem seus contratos cobertos por grandes companhias de seguros de boa reputação.

35 Na verdade, casas com armas de fogo convencionais podem pagar prêmios mais baixos, se a companhia de seguros pensar que isso reduzirá a incidência de crimes na área o suficiente para justificar o incentivo.

36 Cobrar prêmios mais altos daqueles que desejam comprar múltiplas armas não é mais injusto do que a prática atual de oferecer descontos a motoristas que tomam aulas de direção segura ou para proprietários de casas que instalam sistemas de alarmes.

37 Devo enfatizar que casos como esse vão ocorrer em qualquer sistema. Eu não estou concedendo nada ao admitir essas possibilidades; na verdade, eu estou tentando demonstrar a vantagem do meu sistema ao explicar sua resposta a esses casos.

38 Novamente, esse processo não envolve a violação dos direitos de ninguém. Ele não discrimina mais contra os clientes do que a prática presente de cobrar prêmios de seguro de carro mais altos de jovens do sexo masculino, mesmo se seus históricos forem totalmente limpos. Nós não precisamos temer uma súbita prisão de todos os deficientes mentais ou de todos os jovens negros do sexo masculino, porque essas práticas não seriam lucrativas. Se fosse cobrado um prêmio de um certo indivíduo mais alto do que ele "merecia", ele poderia procurar outra companhia de seguros.

39 Quando eu assisto ao America's Most Wanted [N.T.: "Os Mais Procurados da América", um programa de TV] ou leio livros que explicam como o FBI captura os serial killers, eu fico chocado com a quantidade de assassinos e estupradores de hoje em dia que cometem seus crimes durante a liberdade condicional.



Defesa Privada

Virtualmente todos concordam que um governo é necessário para prover o serviço essencial da defesa militar. As pessoas com uma mente aberta podem ser genuinamente simpáticas a argumentos por uma sociedade livre. No entanto, elas consideram completamente ingênuas todas as inteligentes diagramações de uma sociedade anarquista ideal, porque uma comunidade baseada em relações voluntárias aparentemente ficaria suscetível à dominação de Estados vizinhos.

Este ensaio defenderá que tal visão, embora disseminada, é completamente falsa. Não há nada intrínseco à defesa militar que requeira provisão estatal. O livre-mercado pode prover defesa mais barata e eficiente que o governo. É estúpido e imprudente atribuir ao Estado a proteção das vidas e propriedades dos civis. Forças de defesa privadas teriam enorme vantagem, e em todas as disputas a não ser aquelas muito desiguais elas destruiriam seus adversários governamentais.

I. Seguros

Numa sociedade anarquista comprometida com a santidade da propriedade privada e dos contratos, companhias de seguros provavelmente assumiriam os serviços de defesa.1 Para ver como esse mercado operaria, uma analogia pode ser útil.

Imagine uma grande cidade localizada numa grande falha geológica. De tempos em tempos, os residentes têm que enfrentar severos terremotos, que matam muitas pessoas e causam danos de bilhões de dólares nas propriedades. Para cobrir os riscos desses desastres, as pessoas adquirem seguros de vida e de propriedade. Elas pagam um prêmio fixo, enquanto as agências de seguro prometem indenizar quem quer que sofra danos corporais ou financeiros durante um terremoto, de acordo com os termos precisos especificados no contrato.

A força da competição mantém razoável o preço desses seguros. Estatísticos podem estimar os custos esperados pelo período de provisão de certos níveis de cobertura, calculando assim os prêmios mínimos que permitiriam que a seguradora (tudo considerado) não lucrasse nem perdesse no longo prazo. Se os preços de mercado excederem esses prêmios mínimos, novas firmas terão um incentivo para entrar no mercado de seguros para lucrar. A entrada delas empurraria para baixo os prêmios, para níveis estatisticamente mais justos.

É crucial perceber que o comportamento dos residentes influencia fortemente a vulnerabilidade da cidade a terremotos, e assim o preço total pago pelas companhias de seguros após cada desastre. Prédios, ruas e pontes podem ser desenhados com graus variados de integridade estrutural e custos de construção; quanto melhor o desenho, maiores os custos. Através da estrutura de prêmios provê os incentivos para desenhos mais seguros, pagando assim seus custos mais altos. Negócios em busca do lucro produzirão, assim, prédios e infraestrutura que exibam a combinação ótima de durabilidade e preço,2 sem qualquer necessidade de códigos e inspetores governamentais.

Além de encorajar desenhos mais resistentes, as companhias de seguros poderiam usar outros meios para reduzir suas vulnerabilidades. Elas podem empregar grupos de sismólogos para prever terremotos e publicar suas descobertas como serviço aos clientes. Para aqueles clientes pobres demais para conseguir pagar por uma casa em construções à prova de terremoto, as companhias de seguros podem construir abrigos e requerer que seus clientes evacuem seus prédios e vão para os abrigos numa emergência.3 Em geral, uma companhia de seguros gastará seus fundos de boa vontade para proteger seus clientes e as propriedades deles, desde que a redução das indenizações esperadas sejam suficientes para justificar os gastos.

Assim como o livre-mercado pode prover a resposta ótima a perigosos terremotos, ele também pode prover a melhor proteção contra exércitos estrangeiros. Como desastres naturais, guerras causam mortes e destruição em larga escala. Numa anarquia de mercado, as companhias de seguro proveriam cobertura para essas perdas também, e assim teriam um grande interesse financeiro em impedir e repelir ataques militares.

II. Financiamento

É fácil imaginar um sistema de entrega de correspondências privado, ou mesmo a construção de rodovias. Em contraste, a defesa de livre-mercado apresenta um obstáculo conceitual, uma vez que não está claro quais seriam os análogos voluntários à taxação e aos gastos militares governamentais.

A defesa da agressão externa é um clássico "bem público" e, como tal, parece o candidato perfeito à provisão governamental.4 Sem a capacidade de extorquir recursos de todos os cidadãos, como poderiam as firmas privadas levantar os fundos necessários pelos exércitos modernos? (Afinal, qualquer cidadão individual poderia se recusar a comprar o "produto" e ainda assim se beneficiar da segurança financiada pelas contribuições de seus vizinhos.) No nível prático, centenas de exércitos pequenos, descentralizados, certamente seriam derrotados por um ataque consolidado de um Estado vizinho.

A estrutura descrita na primeira seção evita essas aparentes dificuldades. Numa sociedade livre, não seriam as pessoas comuns, mas as companhias de seguros, que financiariam os serviços de defesa. Cada dólar de prejuízo causado pela agressão estrangeira seria totalmente compensado, e assim os seguradores procurariam proteger a propriedade de seus clientes como fosse delas mesmas.5 Por conta das economias de escala, a cobertura para grandes regiões geográficas provavelmente seria provida por poucas firmas dominantes, assegurando preços padronizados e uma defesa coordenada.

Será útil desenvolver essa hipotética consolidação. Suponha que nós comecemos numa sociedade anarquista sem quaisquer serviços de defesa. Imagine que a séria ameaça militar que existe seja a de invasão e conquista por um certo vizinho. Os residentes dessa sociedade livre seguram suas vidas e todas as propriedades mais importantes, de forma que as reclamações totais de restituição que se seguissem à invasão são estimadas em um trilhão de dólares.6 As agências de seguro contratam consultores geopolíticos e acreditam que o risco anual de ataque é de dez por cento. Elas precisam, portanto, coletar aproximadamente $100 bilhões por ano em prêmios para se cobrirem. Se a sociedade for composta por dez milhões de pessoas, o gasto per capita em seguros contra agressão estrangeira é de $10.000. Acima desse pesado custo, os residentes permanecem completamente vulneráveis.

Nessa sinistra situação, um executivo da companhia de seguros Ace tem uma brilhante idéia. Ele pode baixar seus preços em relação aos rivais e oferecer o mesmo nível de cobertura por apenas, digamos, $5.000 por pessoa — metade do preço cobrado por seus competidores. Ele pode fazer isso gastando uma parte de sua receita em defesas militares, assim diminuindo a probabilidade de conquista estrangeira. Por exemplo, ele pode pagar a agências privadas de defesa $40 bilhões por ano para manter helicópteros, tanques, pessoal treinado, etc, e estarem em alerta constante para repelir quaisquer ataques. Se essas preparações reduzissem a probabilidade de invasão estrangeira para apenas, digamos, metade de um por cento ao ano, então elas "se pagariam". O inovador executivo conseguiria enormes lucros e dominaria o mercado de seguros militares, ao passo que os residentes se beneficiariam de maior segurança e menores prêmios. Com a propriedade protegida de expropriações estrangeiras, o investimento e o crescimento populacional seria estimulado, permitindo maiores economias de escala e maiores cortes de preços.

Caronas

O sistema acima realmente evita o perene problema da defesa privada? Isto é, ele pode superar o problema dos "caronas"? Depois que a Ace Seguros acordou contratos de longo-prazo com as agências de defesa, o que evitaria que uma firma rival, como a Moocher Seguros, de abaixar mais seus preços? Afinal, a probabilidade de danos de propriedade seria a mesma tanto para os clientes da Moocher quanto para os da Ace, e contudo a Moocher não gastaria um centavo em dispêndios militares.

Esse raciocínio é perfeitamente válido, mas o argumento pela defesa privada permanece forte. Em primeiro lugar, os clientes das companhias de seguros não são homogêneos, e consequentemente o mercado para defesa é muito mais "particularizado" do que é assumido nos modelos econômicos padrão. Embora acima nós tenhamos discutido prêmios per capita, foi apenas para dar ao leitor uma vaga idéia dos gastos envolvidos. Na verdade, grandes firmas proveriam a maior parte da receita da indústria de seguros. Os planos de complexos de apartamentos, shopping centers, fábricas, bancos e arranha-céus seriam muito maiores do que aqueles pagos pelos indivíduos.

Consequentemente, não haveria o pesadelo das negociações que tanto atormenta os céticos da defesa privada. O brilhante executivo da Ace Seguros estaria perfeitamente consciente das considerações acima. Se necessário, ele assinaria apenas contratos de longo-prazo e os condicionaria à aceitação de uma base inicial de clientes. Em outras palavras, ele ofereceria um pacote comum para as maiores companhias, mas os preços baixos, especiais, só se aplicariam se um suficiente número desses contratos desse plano fosse vendido.

É verdade que esse remédio sugerido é meio vago. Há muitas questões interessantes (estudadas na teoria dos jogos cooperativos) em relação ao processo de negociação dessas grandes firmas e como os custos de defesa seriam divididos entre elas. Mas não se engane, a defesa militar seria adequadamente financiada, pela simples razão de que os acionistas de companhias ricas podem ser qualquer coisa, menos descuidados em relação a dinheiro. Por causa de seus tamanhos, as maiores companhias não poderiam ignorar o efeito de seus próprios comportamentos na defesa militar.7

Além do mais, certos tipos de propriedade — aeroportos, pontes, rodovias, usinas de força e, é claro, equipamentos militares — seriam alvos muito mais prováveis de ataques estrangeiros, e seus donos assim constituiriam um grupo ainda menor a se beneficiar desproporcionalmente dos gastos de defesa. Essa heterogeneidade enfraqueceria mais o caráter "externalizador" dos serviços de defesa, fazendo com que um arranjo eficiente fosse mais facilmente alcançado. As companhias que terminassem pagando mais poderiam considerar o arranjo injusto, mas no entanto sempre haveria um arranjo.8 Os maiores contribuintes podem até mesmo propangandear esse fato, da mesma forma que as grandes corporações fazem portentosas doações à caridade para demonstrar generosidade.

Assim nós vemos que as "particularidades" de uma indústria de defesa realista mitiga o impacto das externalidades positivas (efeitos externos) dos gastos militares. Uma vez que umas poucas indústrias críticas pagarão por um nível básico de defesa a despeito das contribuições dos outros, o único possível prejuízo vindo dos "caronas" seria um fardo "injusto" colocado sobre certas corporações. De qualquer forma, não é nem mesmo óbvio que fosse haver mais "caronas". Como nós argumentaremos, serviços de defesa podem, em sua maior parte, ser restritos aos consumidores pagantes, afinal.

Na discussão anterior, nós tratamos a invasão estrangeira como uma proposição de tudo-ou-nada; o Estado vizinho ou rapidamente conquistava a sociedade anarquista ou seu ataque era efetivamente detido. Na verdade, as guerras podem permanecer sem resolução por muitos anos. Durante essas batalhas prolongadas, as companhias de seguros certamente seriam capazes de alinhar suas forças militares de forma a limitar a proteção gratuita de não-clientes.

Obviamente, as escoltas navais só protegeriam os comboios de consumidores pagantes. Todos os outros navios estariam à mercê dos ataques estrangeiros. Defesas anti-mísseis e anti-aéreas protegeriam apenas as regiões nas quais os consumidores tivessem propriedades. E, é claro, os donos de imóveis na fronteira pagariam sempre pela própria proteção, caso contrário as agências de defesa alinhariam seus tanques e tropas em uma posição mais defensável.9

Gastos Militares Governamentais vs. Privados

As considerações acima mostram que as pessoas que vivessem numa anarquia de mercado poderiam superar o problema dos caronas e levantar recursos adequados para a defesa. Contudo, há um contra-argumento simétrico que é geralmente negligenciado. É verdade que a taxação coercitiva permite que os governos adquiram enormes orçamentos militares. Mas essa vantagem é contrabalançada pela tendência dos governos de desperdiçarem recursos. Para qualquer comparação relevante entre os orçamentos de defesa do governo e do setor privado, o deste último precisa ser multiplicado várias vezes, uma vez que agências de defesa privadas podem comprar equipamentos militares por uma fração do preço pago pelos governos.

Todos sabem que os governos são extravagantes com seu dinheiro, e que os orçamentos militares são sempre um enorme componente do gasto total. Uma vez que suas operações são frequentemente conduzidas em terras estrangeiras e em segredo, o orçamento militar pode ser gasto virtualmente de qualquer forma. Os pagadores de impostos ficaram chocados quando uma audição revelou que o Pentágono americano havia pago 600 dólares por cada assento das privadas. O que poucas pessoas percebem é que esse exemplo é típico. Por conta do monopólio governamental, ninguém tem qualquer idéia de quanto um F-14 Tomcat "deveria" custar, então seu preço de $38 milhões não choca ninguém.

O último ponto é importante, então eu quero enfatizar que ele é causado pela própria natureza do governo, não por meros acidentes da história. Se um governo consegue seus recursos através da taxação, então ele precisa justificar esse roubo gastando o dinheiro pelo "bem público". A não ser nos regimes mais despóticos, os governantes não podem simplesmente embolsar o dinheiro. Consequentemente, nem um único oficial de todo o governo tem qualquer incentivo pessoal para identificar e eliminar desperdícios.10

Na anarquia de mercado, por outro lado, serviços de defesa seriam vendidos no mercado aberto. A dura competição entre ofertantes e a consciência dos custos entre os compradores manteriam tão baixos quanto possível tanto os preços dos assentos das privadas quanto os das aeronaves de combate.

III. Cálculo Econômico

As primeiras duas seções demonstraram que a defesa militar, como qualquer outro serviço, pode ser provido no livre-mercado. Para apreciar a tremenda vantagem que isso dá à sociedade anarquista, será útil considerar a superioridade da indústria privada em tempos de paz versus o planejamento governamental. Para isso, nós revisaremos a crítica do socialismo.

Os oponentes tradicionais do socialismo argumentaram que ele não possuía suficientes incentivos para o trabalhador médio; sem ligar o pagamento à performance, as pessoas trabalhariam menos e a produção seria muito menor do que na economia capitalista. Somente se um novo "Homem Socialista" surgisse, que gostasse de trabalhar por seus companheiros tanto quanto para si mesmo, um sistema socialista poderia ter sucesso. Embora válida, essa crítica não capta a essência do problema. Foi Ludwig von Mises que explicou11, num paper de 1920, a verdadeira falha do socialismo: sem preços de mercado para os meios de produção, os planejadores de mercado não poderiam fazer o cálculo econômico, e assim literalmente não teriam idéia de se estariam usando os recursos eficientemente. Consequentemente, o socialismo sofre não apenas de um problema de incentivos, mas também de um problema de conhecimento.12 Para equiparar a performance de uma economia de mercado, os planejadores socialistas não precisariam apenas ser anjos, comprometidos com o bem-estar coletivo — eles precisariam também ser deuses, capazes de cálculos sobrehumanos.

A qualquer tempo, há somente uma oferta limitada de trabalho, matérias-primas e recursos de capital que podem ser combinados de várias formas para criar bens de consumo. Uma função primária de um sistema econômico é determinar quais bens deveriam ser produzidos, em quais quantidades e de qual forma, a partir desses recursos limitados. A economia de mercado resolve esse problema através da instituição da propriedade privada, que implica a livre empresa e preços livremente flutuantes.

Os proprietários do trabalho, do capital e dos recursos naturais — os "meios de produção" — são livres para venderem suas propriedades para quem fizer a maior oferta. Os empreendedores são livres para produzir e vender quaisquer bens que quiserem. O teste final de lucro e perda impõe a ordem nesse aparente caos. Se um produtor continuamente gasta mais na produção do que ganha com a venda, ele irá à falência e não mais influenciaria de qualquer forma os meios pelos quais os recursos da sociedade são usados. Por outro lado, o produtor bem-sucedido cria um maior valor para os consumidores, comprando recursos por um certo preço e transformando-os em bens de maior preço. Na economia de mercado, esse comportamento é recompensado com lucros, os quais permitem que o produtor em questão tenha uma maior palavra em relação ao uso dos recursos escassos da sociedade.

Nada disso é verdadeiro no caso do estado socialista. Mesmo se eles realmente desejassem a felicidade dos cidadãos, os planejadores governamentais desperdiçariam os recursos à disposição. Sem o teste de lucro e perda, os planejadores não teriam respostas e assim estariam agindo no escuro.13 Uma decisão de produzir mais sapatos e menos camisas, ou vice-versa, seria altamente arbitrária. Além disso, os indivíduos que em última análise decidiriam o destino dos recursos da sociedade seriam selecionados através do processo político, não através da meritocracia do mercado.

IV. Defesa Privada vs. Governamental

As vantagens gerais da indústria privada sobre o planejamento governamental operam igualmente bem na área da defesa militar. Já que o orçamento das forças militares é obtido de maneira coercitiva, o elo entre a produção e a satisfação do consumidor é enfraquecido. Por causa do seu monopólio, as forças armadas do Estado podem agir de qualquer forma indefinidamente, sem base de comparação. Mesmo num Estado limitado, cujos cidadãos têm um grande grau de liberdade econômica, as forças armadas constituem uma ilha de socialismo.

Para ter uma sensação dos problemas envolvidos, imagine a situação em que Josef Stalin se viu durante a Segunda Guerra Mundial. Como um ditador absoluto, Stalin tinha à sua disposição todos os recursos — inclusive humanos — da União Soviética. Stalin precisava usar esses recursos para atingir seus objetivos, o maior dos quais (nós assumiremos) era a preservação e a expansão de seu poder político.

Algumas das escolhas de Stalin foram suficientemente óbvias. Claramente ele precisava se livrar do regime nazista. E claramente isso requeria (antes da rendição) a derrota dos exércitos alemães que cercavam Stalingrado.

Mas quando entramos em detalhes, contudo, as escolhas de Stalin nos parecem menos claras. Sim, ele usaria todo o aço disponível para a produção de equipamento militar; não há necessidade de novos tratores no momento. Mas quanto desse aço seria dedicado a aviões? A tanques (e a quais modelos)? A morteiros? A bombas? Ou a ferrovias (necessárias para mover recursos para o front)?

Sim, todos os civis — jovens e velhos, doentes e saudáveis — deveriam dedicar suas vidas para repelir os Huns. Mas precisamente quantas pessoas deveriam enfrentar o inimigo? Quantas deveriam trabalhar nas fábricas de tanques? Construir trincheiras em volta da cidade? Ou buscar comida (para assegurar a sobrevivência através do inverno)?

Mesmo essas decisões táticas e estratégicas normalmente tomadas por comandantes militares têm o mesmo sabor. Sim, um bom atirador como Vasily Zaitsev deveria ser usado como sniper, e não como piloto de bombardeiro ou trabalhador nas fábricas. Mas como melhor explorar Vasily? Ele deveria matar tantos alemães o mais rápido possível? Certamente não, pois todo tiro seu revela sua posição. Mas também seria conservador demais fazê-lo esperar meses na esperança de dar um tiro certo num general.

É evidente que Stalin (ou seus subordinados) precisam tomar todas essas decisões e milhares de outras parecidas em grande medida através de adivinhações arbitrárias. O objetivo de guerra de expelir o inimigo não é diferente do problema da produção de comida em tempo de paz. Em ambos os casos, as ações de Stalin levaram à morte de milhões de seu próprio povo. Assim como um livre-mercado na agricultura evitaria a fome, um livre-mercado na defesa evitaria essas perdas monstruosas.

Defesa Privada

O cálculo econômico permite que os empreendedores julguem se um plano é lucrativo. Ele permite que os empreendimentos bem-sucedidos se expandam e faz com que as operações fracassadas se dissipem. O mercado constantemente se reajusta às alterações de dados: as condições de oferta, a demanda dos consumidores, o conhecimento técnico.

Agora que nós entendemos a forma pela qual as companhias de seguros poderiam objetivamente e quantitativamente avaliar o sucesso militar, é fácil ver as vantagens da defesa privada. Numa situação comparável à Batalha de Stalingrado, a comunidade anarquista responderia da forma mais eficiente que fosse humanamente possível. As companhias de seguros determinariam o valor relativo de vários alvos militares e colocariam caçadores de recompensas atrás deles (para captura ou eliminação). Os indivíduos livres para utilizar seus próprios recursos tentariam várias técnicas para produzir esse "serviço". Alguns poderiam comprar tanques e contratar homens para atacar frontalmente os alemães; outros poderiam contratar atiradores de elite para acertá-los de longe. Alguns poderiam comprar morteiros e protegê-los. Alguns poderiam contratar propagandistas e subornar componentes do exército inimigo.

Com o tempo, apenas as melhores firmas de defesa sobreviveriam. Elas expandiriam as próprias operação, aumentando a eficiência total do esforço de guerra. Uma vez que elas estariam operando num sistema de direitos de propriedade, elas precisariam comprar todos os recursos, inclusive o trabalho. Isso asseguraria que os recursos fossem usados tão efetivamente quanto possível. (Por exemplo, aquelas áreas no front com necessidade urgente de soldados ou munição aumentariam seus salários ou preços, evitando a arbitrariedade do emprego e da oferta de tropas do governo.) Mesmo se — para reduzir os custos de transação e minimizar o tempo de resposta — uma única firma monopolizasse a defesa de uma região, a firma ainda poderia utilizar o mecanismo interno de cálculo de custos e avaliar a lucratividade de seus vários ramos.

Talvez mais importante, a livre competição asseguraria que os avanços tecnológicos e estratégicos fossem recompensados e rapidamente implementados. Em contraste, as forças armadas do governo dependem de uma cadeia burocrática de comando onde a inovação, especialmente de outsiders, é sufocada. Num sentido bastante real, um confronto militar entre uma sociedade estatista e uma sociedade livre seria uma guerra de poucas mentes contra milhões.

Maçãs e Laranjas

Essa discussão teórica certamente vai fazer com que o cínico observe: "Eu gostaria de saber o que suas companhias de seguros fariam se encontrassem uma divisão Panzer."

Mas essa afirmação não compreende o cerne da questão. Nós demonstramos que um sistema de defesa privado é mais efetivo, não que é invulnerável. Sim, uma pequena sociedade de anarquistas seria incapaz de repelir o enorme poder da Alemanha nazista. Mas uma pequena sociedade de estatistas se sairia ainda pior — e, de fato, muitos exércitos governamentais foram obliterados pelos exércitos de Hitler.

Especialistas

Pode-se imaginar se os indivíduos privados teriam tanto conhecimento de questões militares quanto os profissionais o governo. Claro que Colin Powell se sai melhor como general que Bill Gates.

Esse fato repousa sobre o status monopolístico das forças armadas dos Estados Unidos. Se os indivíduos privados pudessem competir com os generais do Pentágono, a incompetência dos últimos seria manifesta. O acionista médio não é especialista em esportes ou em culinária estrangeira, contudo a propriedade privada ainda produz excelentes clubes de baseball e restaurantes franceses. Inteligentes executivos podem contratar outros para identificar indivíduos talentosos.

Mas mesmo se um sistema militar privado limitado pelos direitos de propriedade e contratos se saísse bem em guerras do passado, e quanto às guerras modernas, com sua espionagem sofisticada? Poderiam haver espiões anarquistas?

As agências de defesa privadas reuniriam informações da mesma forma que qualquer companhia. Eles contratariam analistas e coletariam informações de qualquer forma legalmente possível. Presumivelmente os computadores mais poderosos e os mais inteligentes quebradores de códigos residiriam na sociedade anarquista. Qualquer dano (se houver) causado pelas proibições de grampos telefônicos e de tortura seria mais que compensada em eficiência.14

Neste tópico, nós notamos que a contra-inteligência provavelmente seria bastante limitada. Agências de defesa teriam provavelmente vários grandes clientes e estariam operando num mercado aberto. Consequentemente, eles precisariam propagandear a capacidade de seus produtos. Essa abertura, contudo, é uma virtude. Que melhor forma de evitar a derrota militar que mostrar para os potenciais inimigos quão avançado seu inimigo anarquista seria? As agências de defesa numa sociedade livre não teriam nada a esconder dos governos.15

"Faça ou Morra"

A natureza da defesa militar a torna menos suscetível ao mecanismo de correção de tentativa e erro do livre-mercado. Um país pode passar anos em preparação para um ataque sem receber qualquer feedback quanto à qualidade de seus esforços. Uma invasão repentina poderia então acabar com os defensores privados antes que eles tivessem uma chance de se adaptar. A situação é diferente da de uma indústria típica, na qual as contínuas transações do dia a dia permitem a experimentação de várias técnicas e a supressão das ineficiências.

Para responder a esse problema, nós devemos lembrar que as agências de defesa privadas, ao contrário de suas contrapartes governamentais, não precisam se limitar a clientes regionais. Uma agência de defesa multinacional16 poderia prover, digamos, aviões de combate para várias companhias de seguros em várias áreas do mundo. Embora treinamentos ou estratégias inadequados17 possam se manter ocultos até que haja um desastre repentino, no máximo apenas uma das "franquias" da agência seria perdida. As outras estudariam o incidente e aprenderiam a evitá-lo.

Nesse ambiente, estrategistas militares de todo o mundo colaborariam com a nova arte da defesa. Embora os planejadores governamentais tenham guardado seus preciosos segredos e protocolos, as agências anarquistas contratariam as melhores e mais brilhantes mentes. Pessoal especializado seria revezado de região para região, fornecendo treinamento com as táticas e equipamentos mais modernos.18 Armas de alta-tecnologia seriam estocadas em localidades centrais e emprestadas a sociedades anarquistas sob iminente ameaça de ataque. Esse compartilhamento — impensável entre exércitos governamentais exceto nas condições mais extremas — reduziria ainda mais os custos da defesa privada.

Armas Nucleares

O argumento pela defesa privada deve lidar com a possibilidade de chantagem nuclear. Nas guerras modernas, aparentemente apenas uma nação que pode ameaçar obliterar seus oponentes está a salvo de um ataque inicial.

A sociedade anarquista provavelmente não desenvolveria ou mesmo teria armas nucleares. Em primeiro lugar, o termo defesa foi adotado conscientemente neste ensaio, e não é um eufemismo como na propaganda do governo. Uma vez que não ganhariam nada com a conquista estrangeira — e uma vez que isso constituiria roubo e seria totalmente condenado nas cortes anarquistas —, os donos de agências de defesa não teriam razão para gastar dinheiro em armas que fossem mal-adaptadas à defesa tática.19 A precisão dos armamentos seria de suma importância, uma vez que as batalhas seriam travadas perto ou entre os clientes de uma agência de defesa.20

Outra consideração, talvez mais importante, é que as agências de defesa muito provavelmente seriam legalmente proibidas de possuir "armas de destruição em massa". O sistema legal anarquista operaria sob os mesmos princípios de contratos voluntários que subjazem a indústria de defesa. As companhias de seguro responderiam pelos indivíduos e prometeriam compensar qualquer um vitimizado por seus clientes. Num esforço para limitar suas responsabilidades, as seguradoras requereriam certas concessões dos clientes. É difícil imaginar que uma agência de seguros prometesse pagar, digamos, $1 milhão para qualquer pessoa (inocente) morta pela Firma de Defesa X, quando a Firma X mantivesse um estoque de bombas de hidrogênio.

Apesar de não possuir armas nucleares, a sociedade anarquista permanece como uma opção viável. Existem sociedades estatistas que atualmente sobrevivem sem artefatos nucleares. Por sua própria natureza, a sociedade anarquista seria uma vizinha completamente inofensiva.21 Nenhum Estado jamais temeria um ataque de forças armadas anarquistas, e assim não haveria necessidade de atacá-las preventivamente (ao contrário dos japoneses em Pearl Harbor). Sem taxação, regulação, tarifas ou quotas de imigração, a sociedade anarquista seria de tremendo valor para os maiores governos.22 Eles certamente agiriam para protegê-la de intimidações por uma potência nuclear rival.23

V. Lições da História

Os registros históricos suportam a nossa discussão teórica. As campanhas militares dos governos são caracterizadas por erros grosseiros que seriam cômicos se não fossem trágicos.24 A única razão pela qual certas potências, como os Estados Unidos, mantêm suas auras de dominação é que elas só enfrentam outros governos.25

Até aqui nós restringimos nossa atenção às forças armadas militares per se. Na verdade, é claro, um Estado limita todas as operações delas com controles de guerras, enfraquecendo ainda mais suas efetividades. Controles de preços não causam apenas aborrecimentos aos consumidores — através de cartões de racionamento e "terças-feiras sem carne" — mas também reduzem a produção.26 As guerras modernas são vencidas com material. Não é acidente que as nações mais livres normalmente ganham suas guerras.

É um mito estatista o de que abusos de direitos devem ser respondidos da mesma forma. Bertrand de Jouvenel, em seu clássico On Power, argumenta que os outros países europeus não tiveram escolha além de instituir o serviço militar obrigatório em resposta a Napoleão.27 Contudo, esse exemplo só prova como é obscura a imaginação dos planejadores governamentais. Certamente uma resiliente sociedade anarquista teria usado sua tecnologia e capacidade industrial superiores para reunir exércitos voluntários 28, com fortes, canhões, cavalos e armaduras suficiente para repelir os mais numerosos, porém pior equipados e treinados, conscritos.2930

A analogia da França lutando contra outras potências européias é inapropriada. Se um exército governamental atacasse uma sociedade anarquista, a situação seria similar à Guerra do Vietnã com os papéis tecnológicos invertidos. Haveria um embate de culturas parecido com o encontro de Pizarro com o imperador inca Atahuallpa.31

As vantagens da propriedade privada são tão manifestas na produção de serviços de defesa quanto são com qualquer outro. Não há nada mágico sobre as forças militares do governo; se elas tiverem menos tanques e aviões e uma organização inferior, elas serão derrotadas pelos adversários anarquistas. Um pequeno país como Taiwan pode se sair muito melhor que a China comunista na arena econômica. E poderia se defender de forma tão eficiente quanto se seus residentes abandonassem a fé na polícia e no exército governamentais e abraçassem a liberdade total.



Notas:

1 Esta é posição padrão entre autores anarcocapitalistas. Veja, por exemplo, Linda e Morris Tannehill, The Market for Liberty, Nova York: Laissez-Faire Books, 1984); Murray N. Rothbard, For a New Liberty, Nova York: Collier, 1978; e Hans-Hermann Hoppe, "The Private Production of Defense", Journal of Libertarian Studies 14:1, inverno de 1998-1999, esp. pp.35-42. Embora esses pensadores tenham delineado um mecanismo viável de defesa privada, as companhias de seguros podem não ser o meio de fato usado numa sociedade anarquista real: poderiam existir soluções de mercado ainda melhores que ainda não foram imaginadas.

2 Suponha que há duas firmas de construção, Sombria e Confiável, e que há um grande terremoto por ano. Uma ponte desenhada pela Sombria custa apenas $10 milhões, mas em caso de terremoto vai sucumbir 10% das vezes. Uma ponte desenhada pela Confiável, por outro lado, custa $15 milhões, mas durante um terremoto tem apenas 1% de chance de sucumbir. (Assuma que as pontes sejam idênticas em todos os outros aspectos relevantes.) O plano atual de seguros para uma ponte da Sombria custaria mais ou menos $1 milhão, enquanto o prêmio para uma ponte da Confiável seria de mais ou menos $150.000. Enquanto a taxa de juros não for mais alta que 20%, as economias em prêmios de seguros justificam a compra das (mais caras) pontes Confiável. (Pela simplicidade, nós ignoramos a depreciação das pontes pela idade, o tempo que é tomado para construir uma ponte que tenha sucumbido e os processos legais por clientes mortos.) Note que essa preferência pelo desenho mais seguro não tem nada a ver com altruísmo da parte dos donos das pontes, que estão apenas tentando minimizar seus custos.

3 O arranjo preciso seria especificado contratualmente. Por exemplo, um plano de seguros requeriria que os clientes sintonizassem em certa estação de TV ou rádio durante uma emergência e que seguissem as instruções. É claro, os clientes seriam livres para desconsiderar esses avisos e permanecer em suas (relativamente inseguras) casas, mas assim eles abririam mão de qualquer compensação que poderiam receber por danos pessoais durante o terremoto.

4 Na literatura econômica mainstream, um bem público é um bem não-excludente e não-rival em consumo. Em outras palavras, o vendedor de um bem público não pode limitá-lo aos consumidores pagantes, e uma pessoa pode consumir o bem sem reduzir sua disponibilidade para os outros. O ar puro é um protótipo de bem público.

5 No jargão econômico, as agências de seguros internalizariam as externalidades positivas (entre os consumidores) dos gastos de defesa.

6 Esse cenário levanta uma questão interessante: as pessoas comprariam seguros contra conquista estrangeira? Qual seria a vantagem de receber um cheque por danos de propriedade se ele também seria confiscado? Uma resposta de mercado possível seria a de difundir a propriedade em grandes áreas. Por exemplo, agências imobiliárias teriam propriedades em toda grande cidade, em vez de se concentrar em uma só área. Firmas de investimento considerariam a "localização" de um ativo financeiro quando fosse reunir seus portifólios diversificados. Dessa forma, mesmo se uma sociedade livre fosse dominada inteiramente por um Estado, as companhias de seguros (multinacionais) ainda precisariam indenizar os donos ausentes de muitas das propriedades tomadas.

7 Mesmo a Moocher Seguros reconheceria os perigos de atrair muitos dos grandes consumidores da Ace, uma vez que os prêmios da Moocher seriam baseados no nível usual de segurança fornecido pelos gastos de defesa da Ace.

8 O típico economista que explica por que o problema dos caronas torna a defesa privada impraticável também argumenta que cartéis são inerentemente instáveis por causa dos incentivos à trapaça. Contudo, os países da OPEC sempre conseguem chegar a um acordo para limitar a produção e distribuir os ganhos.

9 No extremo, nós podemos até mesmo imaginar agências de defesa provendo explicitamente inteligência a inimigos estrangeiros, especificando quais vizinhanças poderiam ser bombardeadas sem represálias. Os comandantes estatísticas — talvez depois de verificar que esses relatórios não constituíam uma armadilha — se regozijariam em ajustar seus ataques, uma vez que isso os permitiria atingir seu objetivo, i.e., carnificina, com menor resistência.

10 O uso de auditorias empurra para trás o problema um passo. Os auditores do governo estão sobre muito menos pressão do que os do setor privado, uma vez que seus empregados — os legisladores — não desejam frugalidade, mas apenas a aparência de frugalidade para os pagadores de impostos.

11 Para uma discussão mais completa, veja Ludwig von Mises, Socialism: An Economic and Sociological Analysis, Liberty Fund, 1981.

12 Estritamente falando, o "problema do conhecimento" (enfatizado por Friedrich Hayek) não é o mesmo que o problema mais geral do cálculo econômico, mas a diferença está fora do escopo deste ensaio.

13 Um exemplo pode ilustrar o problema: todos sabem que seria um "desperdício" incrível construir uma ponte de ouro puro. Entretanto, a grande maioria das decisões dos planejadores — não apenas do que fazer, mas como fazer — não são tão óbvias.

14 A CIA, apesar de seus grandes poderes e enormes orçamentos, fracassou em prever o colapso da União Soviética, abrigou um infiltrado por anos, causou o bombardeio acidental da embaixada chinesa, e fracassou em evitar os ataques do 11 de setembro (apesar da descoberta de planos terroristas similares em 1995).

15 Certas precauções seriam obviamente tomadas. Por exemplo, um dono de uma fábrica não contrataria um diplomata inimigo por medo de sabotagem. Mas como dono de fábrica, essa política estaria perfeitamente em seus direitos; ele não precisaria de nenhum poder "especial de guerra".

16 Hoppe escreve: "todas as companhias de seguros são conectadas através de uma rede de acordos contratuais de assistência mútua e arbitragem e por um sistema de agências internacionais de resseguros, representando poderes econômicos combinados que superam em muito o da maioria, senão de todos os governos" (p.36).

17 Warren Earl Tilson II propôs que as forças de defesa privadas pudessem se manter atualizadas através de competições televisionadas, uma sugestão que também amenizaria o problema de financiamento. Nós notamos que (como as de esportes profissionais) essas competições seriam justas, em grande contraste com, digamos, os testes de ABM do Pentágono, dos quais bilhões de dólares de dinheiro sujo dependem.

18 É verdade que os oficiais militares do governo têm os mesmos comportamentos, mas numa escala muito menor do que ocorreria no livre-mercado.

19 Por exemplo, George W. Bush estaria gastando $1 bilhão por mês para bombardear as cavernas do Afeganistão se fosse seu dinheiro?

20 Essas considerações também mostram por que uma sociedade anarquista não precisa temer que um governo estrangeiro use suas próprias armas (avançadas) contra ela. As firmas de defesa privadas provavelmente venderiam seus artigos para compradores estrangeiros (a depender do status legal dos governos em cortes anarquistas), mas essas seriam destinadas para uso defensivo. Provavelmente não haveriam porta-aviões, bombardeiros de longo-alcance ou submarinos capazes de viagens transoceânicas.

21 Isso, é claro, implica que um mundo de sociedades anarquistas seria livre de guerras.

22 O cínico pode acreditar que os maiores governos perceberiam uma sociedade anarquista de sucesso como uma ameaça. Embora isso seja verdade em certa medida, políticos não são estúpidos; eles raramente destroem parceiros de comércio lucrativos, especialmente os que tiverem capacidade de se defenderem.

23 Esse aumento é admitidamente estranho; parece reconhecer o benefício do uso de algum aparato coercitivo. Mas note como a crítica mudou. Normalmente o crítico da defesa privada diz que ela pode funcionar na teoria, mas não na prática. Agora o crítico reclama que a defesa privada pode funcionar na prática, mas não na teoria.

24 As tropas do General Washington no Vale Forge estavam absurdamente mal-equipadas, muitas não tinham sapatos. Durante a Guerra Civil, os generais da união atrasaram a introdução de um novo rifle com medo de que seus homens fossem desperdiçar munição. Os proponentes do poder aéreo foram ridicularizados na Primeira Guerra Mundial. Almirantes britânicos teimosamente se recusaram a agrupar seus navios em resposta aos barcos U alemães, até que os aliados americanos os convenceram a fazer o contrário. A Linha Maginot foi uma piada sem graça. O exército polonês usou a cavalaria contra a blitzkrieg alemã, depois de dizer para seus homens que os tanques eram feitos de cartolina. As falhas de inteligência em torno de Pearl Harbor foram tão monumentais de forma a dar credibilidade aos teóricos da conspiração. Os capitães de submarinos aprenderam no começo da Segunda Guerra Mundial que, por conta de um problema no mecanismo de pinos, tiros diretos não explodiriam seus torpedos, de forma que eles propositadamente procuravam dar tiros de relance. O fabricante negou o problema por anos até finalmente corrigi-lo. Exemplos de erros militares são abundantes.

25 A inabilidade de uma coalizão dos governos mais fortes do mundo para eliminar um único homem — Osama bin Laden — depois de meses de "resolução" demonstra os limites do poder do Estado.

26 Controles de preços são particularmente desastrosos para países que atravessem um bloqueio. Sem grandes lucros, por que os traficantes se arriscariam ao confisco ou mesmo à morte?

27 Bertrand de Jouvenel, On Power: The Natural History of Its Growth (Indianapolis: Liberty Fund, 1993), p. 164.

28 O uso de soldados pagos, que viam seu trabalho como apenas uma escolha ocupacional, também evitaria os perigos de exércitos permanentes, os quais os governos inevitavelmente usam contra seus próprios cidadãos.

29 A conscrição, longe de ser uma valiosa ferramenta dos governos, apenas permite que eles desperdicem seus recursos mais preciosos. No papel, os estados do sul deveriam ter facilmente sobrevivido os ataques do norte. Mas seus comandantes — treinados na Ponta Oeste — descartaram as descorteses táticas de guerrilha e, em vez disso, reuniram seus homens capazes e os fizeram marchar na direção das armas da União.

30 Também notamos a relativa dificuldade que Napoleão encontraria em conquistar um vizinho anarquista (em relação a um estatista). Sem governo centralizado, não há instituição com a autoridade para se render a um poder estrangeiro (veja Hoppe, p. 49). Ao criar um aparato coercitivo de taxação e controle sobre seus súditos, os estados europeus tornaram a tarefa de Napoleão muito mais fácil. Em contraste, levou anos para que os britânicos conseguissem subjugar a Irlanda, com suas instituições descentralizadas.

31 Em uma das vitórias mais esmagadoras da história, "Pizarro, liderando um minúsculo grupo de 168 soldados espanhóis, estava em terreno não-familiar, não conhecia a população local, completamente fora de contato com os espanhóis mais próximos (...) e muito além do alcance de reforços que chegassem a tempo. Atahuallpa estava no meio de seu império de milhões de súditos e imediatamente seguido por seu exército de 80.000 solados. (...) No entanto, Pizarro capturou Atahuallpa poucos minutos depois que os dois líderes colocaram os olhos um no outro." Veja Jared Diamond, Guns, Germs, and Steel (Nova York: W. W. Norton & Co., 1999), p. 68.



Sobre os Anarquistas

Robert P. Murphy é um candidato ao Ph.D. de economia na New York University, onde está trabalhando numa dissertação sobre teoria monetária e de juros. Ele é editor sênior do Anti-State.com, colunista regular do LewRockwell.com e contribuinte frequente do Mises.org. Ele tem um site pessoal, BobMurphy.net.

Jeremy Sapienza é um web developer em Miami. Ele é fundador e editor do Anti-State.com, webmaster assistente do Antiwar.com e colunista regular do LewRockwell.com. Ele possui um sistema de email grátis para anarquistas no anarchomail.com.

Robert Vroman é um estudante de economia da St. Louis University. Ele está no comitê do St. Louis Libertarian Party e é um organizador do Free State Project. Seus websites pessoais são EndAuthority.com e Anti-Marx.com.
Robert P. Murphy (1976) é um economista da escola austríaca e autor anarcocapitalista. É um acadêmico adjunto do Ludwig von Mises Institute e do Mackinac Center for Public Policy.