A herança libertária: A Revolução Americana e o liberalismo clássico - Murray N. Rothbard

No dia da eleição de 1976, a chapa do Partido Libertário de Roger L. MacBride para presidente e David P. Bergland para vice conseguiu 174.000 votos em trinta e quatro estados por todo o país. O sóbrio Congressional Quartely foi levado a classificar o inexperiente Partido Libertário como o terceiro maior partido político dos Estados Unidos. O notável crescimento deste novo partido pode ser percebido ao se considerar que ele foi fundado apenas em 1971, por um punhado de pessoas reunidas numa sala de estar no Colorado. No ano seguinte, sua chapa presidencial chegou às cédulas de dois estados. E agora ele é o terceiro maior partido da América.

O que é ainda mais notável é que o Partido Libertário conseguiu esse crescimento com uma adesão consistente a um novo credo ideológico — "libertarismo" —, trazendo assim ao cenário político americano, pela primeira vez em um século, um partido interessado em princípios e não meramente no ganho de dinheiro ou de cargos públicos. Comentaristas e cientistas políticos já nos disseram inúmeras vezes que a beleza da América e de nosso sistema partidário é sua ausência de ideologias e seu "pragmatismo" (uma amável palavra para o enfoque exclusivo no ganho de dinheiro e empregos às custas dos infelizes pagadores de impostos). Como, então, explicar o crescimento incrível de um novo partido que é franca e ardentemente dedicado à ideologia?

Uma explicação é a de que os americanos nem sempre foram tão pragmáticos e não-ideológicos. Pelo contrário, os historiadores agora percebem que a própria Revolução Americana não foi somente ideológica, mas foi também o resultado de uma devoção ao credo e às instituições do libertarismo. Os revolucionários americanos se apoiavam no credo libertário, uma ideologia que os levou a resistir com as próprias vidas, fortunas e dignidades às invasões de seus direitos e liberdades cometidas pelo governo imperial britânico. Os historiadores debateram por muito tempo as causas precisas da Revolução Americana: teriam sido constitucionais, econômicas, políticas ou ideológicas? Nós agora percebemos que, como libertários, os revolucionários não viam qualquer conflito entre os direitos morais e políticos e a liberdade econômica. Pelo contrário, eles consideravam a liberdade civil e moral, a independência política e a liberdade de produção e comércio como partes de um só sistema, o qual Adam Smith chamaria, no mesmo ano em que a Declaração de Independência foi escrita, de "óbvio e simples sistema de liberdade natural".

O ideário libertário emergiu dos movimentos "liberais clássicos" dos séculos XVII e XVIII no mundo ocidental, mais especificamente a partir Revolução Inglesa do século XVII. Esse movimento libertário radical, embora apenas parcialmente bem sucedido em sua terra de origem, a Grã-Bretanha, foi capaz de inaugurar lá a Revolução Industrial, através da liberação das sufocantes restrições do controle estatal e das guildas urbanas apoiadas pelo governo. Pois o movimento liberal clássico foi, por todo o mundo ocidental, uma grande "revolução" libertária contra o que podemos chamar de Velha Ordem — o ancien régime que dominou seus súditos por séculos. Este regime havia, no começo da era moderna no século XVI, imposto um Estado central absoluto e o governo de um rei pelo direito divino sobre uma rede mais antiga de monopólios feudais de terras e restrições e controles de guildas urbanas. O resultado foi uma Europa estagnada sob uma pesada rede de controles, impostos e privilégios monopolísticos para a produção e venda conferidos pelos governos centrais (e locais) a produtores favorecidos. Esta aliança do novo burocrático e beligerante Estado com mercadores privilegiados — uma aliança que seria chamada de "mercantilismo" por historiadores posteriores — e com uma classe de senhores feudais constituía a Velha Ordem, contra a qual o novo movimento de liberais clássicos e radicais se rebelou nos séculos XVII e XVIII.

Os liberais clássicos defendiam a liberdade individual em todos os seus aspectos interrelacionados. Na economia, os impostos deveriam ser drasticamente reduzidos, os controles e as regulações, eliminados, e a energia, a empresa humana e os mercados, liberados para produzir e beneficiar toda a massa de consumidores. Os empreendedores deveriam ser, por fim, livres para competir, produzir, criar. A liberdade pessoal e civil deveriam ser garantidas contra a depredação e a tirania do rei e de seus asseclas. A religião, fonte de sangrentas guerras por séculos, quando diferentes facções lutavam pelo controle do Estado, seria liberada da imposição e interferência estatais, de forma que todas as religiões — ou não-religiões — pudessem coexistir em paz. A paz, inclusive, era a política externa do liberalismo clássico; a velha política imperial de engrandecimento do Estado, em busca de poder e riqueza, deveria ser substituída por uma política estrangeira de paz e livre comércio com todas as nações. E, uma vez que a guerra era engendrada por exércitos e marinhas permanentes, pelo poder militar em busca de expansão, esses establishments militares deveriam ser substituídos por milícias locais voluntárias, por cidadãos-civis que apenas desejariam lutar em defesa de seus lares e comunidades particulares.

Assim, a tão conhecida "separação da Igreja e do Estado" era apenas uma das muitas idéias interrelacionadas que poderiam ser sumarizadas como a "separação da economia e do Estado", a "separação da imprensa e do Estado", a "separação das terras e do Estado", a "separação da guerra e das questões militares e do Estado" — de fato, a separação do Estado de virtualmente tudo.

O Estado, em suma, deveria ser mantido extremamente pequeno, com um orçamento muito baixo, quase insignificante. Os liberais clássicos nunca desenvolveram uma teoria da taxação, mas todo aumento de impostos era combatido fervorosamente — na América, dois aumentos de impostos foram a faísca que desencadeou, ou quase, a Revolução (o imposto sobre os selos e o imposto sobre o chá).

Os primeiros teóricos do liberalismo clássico foram os Levelers, durante a Revolução Inglesa, e o filósofo John Locke, no final do século XVII, seguidos pelos "verdadeiros whigs", a oposição libertária radical ao "Whig Settlement" — o regime da Grã-Bretanha do século XVIII. John Locke estabeleceu os direitos de propriedade de cada indivíduo a sua pessoa e propriedade; o propósito do governo estava estritamente limitado à defesa desses direitos. Nas palavras da Declaração de Independência, de inspiração lockeana, "para assegurar estes direitos, os Governos são instituídos entre os Homens, derivando seus justos poderes do consentimento de seus governados. E sempre que qualquer Forma de Governo se torna destrutiva desses fins, é de Direito do Povo alterá-la ou aboli-la".

Embora Locke fosse amplamente lido nas colônias americanas, sua filosofia abstrata não foi calculada para incitar os homens à revolução. Esta tarefa foi realizada pelos lockeanos radicais do século XVIII, que escreviam de forma mais popular, agressiva e apaixonada, e que aplicavam a filosofia básica aos problemas concretos do governo — especialmente do governo britânico — de seu tempo. Os escritos mais importantes desse tipo foram as "Cartas de Catão", uma série de artigos de jornal publicados no começo dos anos 1720 em Londre pelos verdadeiros whigs John Trenchard e Thomas Gordon. Embora Locke houvesse mencionado a pressão revolucionária, que poderia ser devidamente exercida quando o governo se tornasse uma ameaça à liberdade, Trenchard e Gordon notaram que o governo sempre tendia a destruir os direitos individuais. De acordo com as "Cartas de Catão", a história humana é um registro do conflito irreprimível entre o Poder e a Liberdade, estando o Poder (governo) sempre pronto para aumentar seu escopo através da invasão dos direitos das pessoas e da usurpação de suas liberdades. Assim, declarou Catão, o Poder deve ser mantido pequeno e sujeito a eterna vigilância e hostilidade por parte do público, para que se assegure que ele se mantenha dentro de seus estreitos limites:

Sabemos, através de infinitos Exemplos e da Experiência, que o Homem investido de Poder, em vez de cedê-lo, fará qualquer coisa, até mesmo a pior e mais sinistra, para mantê-lo; e jamais houve qualquer Homem sobre a Terra que o houvesse abandonado enquanto pudesse fazer tudo de sua própria Forma com ele. (...) Isto parece certo. O Bem do Mundo, ou de seu Povo, jamais foi um de seus Motivos ter continuado no Poder, ou para abdicar dele.

É da Natureza do Poder tornar-se cada vez mais abusivo e transformar todo Poder extraordinário, concedido em Momentos particulares, e em Ocasiões particulares, em um Poder ordinário, para ser usado a todos os Momentos, e quando não há qualquer Ocasião, nem qualquer Vantagem em seu emprego. (...)

Ora! O Poder usurpa diariamente a Liberdade, com Sucesso sempre evidente; e o Equilíbrio entre eles está quase perdido. A Tirania absorveu quase a totalidade da Terra, e, atacando as Raízes e Ramos da Humanidade, torna o Mundo um Matadouro; e certamente continuará a destruir, até que seja ele próprio destruído, ou, o que é mais provável, até que não haja nada mais para se destruir.1
Esses avisos foram rapidamente absorvidos pelos colonos americanos, que reimprimiram as "Cartas de Catão" muitas vezes pelas colônias até o tempo da Revolução. Essa atitude determinada levou ao que o historiador Bernard Bailyn chamou apropriadamente de o "libertarismo radical transformador" da Revolução Americana.

Pois a revolução não foi somente a primeira tentativa moderna de livrar-se do jugo do imperialismo ocidental — naquele tempo, da maior potência do mundo. O que é mais importante é que, pela primeira vez na história, os americanos cercaram seus novos governos com numerosos limites e restrições, incorporados em constituições e, particularmente, em cartas de direitos. A Igreja e o Estado eram rigorosamente separados nos novos estados e a liberdade religiosa era considerada da maior importância. As reminiscências do feudalismo foram eliminadas por todos os estados com a abolição dos privilégios feudais de vínculo e primogenitura. (No primeiro caso, um ancestral morto é capaz de vincular terras a sua família para sempre, impedindo que seus herdeiros vendam qualquer parte delas; no segundo, o governo exige que o único herdeiro de propriedades seja o filho mais velho.)

Não era permitido que o novo governo federal, formado pelos Artigos da Confederação, cobrasse quaisquer impostos do público; e qualquer extensão fundamental de seus poderes requeria consentimento unânime de todos os governos estaduais. Acima de tudo, o poder militar do governo nacional era limitado por barreiras e suspeitas; pois os libertários do século XVIII compreendiam que a guerra, os exércitos permanentes e o militarismo há muito tempo eram o método principal de engrandecimento do poder do Estado.2

Bernard Bailyn resumiu da seguinte maneira a conquista dos revolucionários americanos:
A modernização da política americana e do governo durante e após a Revolução foi uma repentina e radical realização do programa que havia sido estabelecido em primeiro lugar pela inteligentsia de oposição (...) durante o reinado de George I. Onde a oposição inglesa, forçando seu caminho por uma complacente ordem social e política, havia apenas sonhado e ambicionado, os americanos, levados pelas mesmas aspirações, mas vivendo em uma sociedade moderna de diversas maneiras, e agora libertados politicamente, poderiam repentinamente agir. Onde a oposição inglesa havia podido apenas agitar por reformas parciais (...) os americanos se moveram de forma rápida e com poucas rupturas sociais para implementar sistematicamente as mais extremas possibilidades de toda a gama de idéias de liberação radicais.

Durante esse processo, eles (...) infundiram na cultura política americana (...) os maiores temas do século XVIII que o libertarismo radical realizou aqui. A crença de que o poder é mal, uma necessidade talvez, mas uma má necessidade; que ele é infinitamente corruptível; e que ele deve ser controlado, limitado, restrito de toda forma compatível com um mínimo de ordem civil. Constituições escritas; a separação dos poderes; cartas de direitos; limitações dos executivos, das legislaturas e das cortes; restrições ao direito de coagir e iniciar guerras — tudo isso expressa uma profunda descrença no poder que está no coração ideológico da Revolução Americana e que permaneceu conosco como um legado permanente desde então.3
Assim, embora o pensamento liberal clássico tenha nascido na Inglaterra, ele alcançaria seu desenvolvimento mais consistente e radical — e sua vida mais longa — na América. Pois as colônias americanas estavam livres dos monopólios feudais das terras e das castas aristocráticas que estavam entranhadas na Europa; na América, os governantes eram oficiais britânicos coloniais e alguns poucos mercadores privilegiados, de quem seria relativamente mais fácil de se livrar com a chegada da Revolução e com a derrubada do governo britânico. O liberalismo clássico, portanto, teve maior suporte popular e menos resistência institucional nas colônias americanas do que em casa. Além do mais, estando geograficamente isolados, os rebeldes americanos não tinham que se preocupar com exércitos invasores de governos vizinhos contra-revolucionários, como, por exemplo, ocorreu na França.

Após a Revolução

Dessa forma, a América, acima de todos os países, nasceu numa revolução explicitamente libertária, uma revolução contra um império; contra a taxação, os monopólios comerciais e as regulações; e contra o militarismo e o poder executivo. A revolução resultou em governos com restrições nunca antes vistas aos próprios poderes. Mas, embora houvesse pouca resistência institucional na América ao avanço do liberalismo, começaram a surgir, desde o começo, poderosas forças elitistas, especialmente entre os grandes mercadores e fazendeiros, que desejavam manter o restritivo sistema "mercantilista" britânico de altos impostos, controles e privilégios monopolísticos concedidos pelo governo. Esses grupos desejavam um forte governo central, ou mesmo imperial; em resumo, eles queriam o sistema britânico sem a Grã-Bretanha. Essas forças conservadoras e reacionárias primeiro surgiram durante a Revolução e, mais tarde, formaram o Partido Federalista e a administração federalista nos anos 1790.

Durante o século XIX, porém, o ímpeto libertário continuou. Os movimentos jeffersoniano e jacksoniano, o Partido Democrático-Republicano e mais tarde o Democrata, explicitamente ambicionavam a virtual eliminação do governo da vida americana. Ele deveria ser um governo sem um exército ou uma marinha permanentes; um governo sem dívidas, sem impostos federais diretos, sem impostos diretos sobre a produção e virtualmente sem tarifas de importação — isto é, com níveis desprezíveis de taxação e gastos; um governo que não empreendesse obras públicas ou melhorias internas; um governo que não controlasse ou regulasse; um governo que deixasse a moeda e o sistema bancário livres e sem inflação; em suma, nas palavras de H. L. Mencken, "um governo que mal consiga ser mais que nenhum governo".

O movimento jeffersoniano rumo a virtualmente nenhum governo declinou depois que Jefferson assumiu a presidência, primeiro com concessões aos federalistas (possivelmente resultado de um acordo pelos votos federalistas para desfazer um desempate no colégio eleitoral), e então com a compra inconstitucional do território da Louisiana. Mas, particularmente, ele declinou com o avanço imperialista rumo à guerra com a Grã-Bretanha no segundo mandato de Jefferson, um avanço que levou à guerra e a um sistema unipartidário que estabeleceu virtualmente todo o programa estatista dos federalistas: altos gastos militares, um banco central, tarifas protecionistas, impostos federais diretos, obras públicas. Aterrorizado com os resultados, Jefferson aposentou-se e retirou-se para Monticello,4 onde inspirou os jovens políticos Martin Van Buren e Thomas Hart Benton a formar um novo partido — o Partido Democrata — que tomaria de volta a América das mãos do novo federalismo e parar reviver o espírito do velho programa jeffersoniano. Quando os dois líderes agarraram-se a Andrew Jackson como seu salvador, o novo Partido Democrata havia nascido.

Os libertários jacksonianos tinham um plano: haveriam oito anos de presidência de Andrew Jackson, seguidos de oito anos de Van Buren e então mais oito anos de Benton. Depois de vinte e quatro anos de uma triunfante Democracia Jacksoniana, o ideal menckeniano de virtual ausência de governo deveria ser alcançado. Não era um sonho impossível, uma vez que estava claro que o Partido Democrata havia se tornado rapidamente o partido majoritário no país. A massa de pessoas era alistada na causa libertária. Jackson teve seus oito anos, que destruíram o banco central e a dívida pública, e Van Buren teve quatro, que separaram o governo federal do sistema bancário. Mas a eleição de 1840 foi uma anomalia, já que Van Buren foi derrotado por uma demagógica campanha sem precedentes, feita pelo primeiro grande líder de campanha moderno, Thurlow Weed, que foi o precursor do emprego de todos os enfeites de campanha com que estamos familiarizados hoje em dia — bordões pegajosos, abotoaduras, músicas, paradas, etc. As táticas de Weed colocaram na presidência um desconhecido e péssimo whig, o General William Henry Harrison, mas essa foi claramente uma casualidade; em 1844, os Democratas estariam preparados para contra-atacar com as mesmas táticas de campanha, e estavam destinados a reconquistar a presidência naquele ano. Van Buren, é claro, deveria continuar a triunfante marcha jacksoniana. Mas então um evento fatídico ocorreu: o Partido Democrata estava dividido na questão crítica da escravidão, ou melhor, na questão da expansão da escravidão em um novo território. A fácil renomeação de Van Buren afundou com uma divisão nas fileiras da Democracia quanto à admissão na União da República do Texas como um estado escravocrata; Van Buren se opunha, Jackson era a favor, e esta divisão simbolizava o grande racha dentro do Partido Democrata. A escravidão, a grave falha antilibertária no libertarismo do programa dos Democratas, surgiu para destruir o partido e seu libertarismo completamente.

A Guerra Civil, em adição a seu derramamento de sangue e devastação sem precedentes, foi usada pelo triunfante e virtualmente unipartidário regime republicano para avançar seu programa estatista, anteriormente whig: poder governamental nacional, tarifas protecionistas, subsídios a grandes negócios, papel-moeda inflacionário, continuação do controle do governo federal sobre os bancos, obras públicas de larga escala, altos impostos sobre a produção e, durante a guerra, o alistamento obrigatório e um imposto de renda. Além disso, os estados vieram a perder seu direito de secessão e outros poderes em relação aos do governo federal. O Partido Democrata deu prosseguimento ao seu programa libertário após a guerra, mas agora ele teria uma estrada muito maior e mais difícil para chegar à liberdade do que tinha antes.

Nós vimos como a América veio a ter a mais profunda tradição libertária, uma tradição que sobrevive em grande parte de nossa retórica política e ainda se reflete na atitude irritável e individualista em relação ao governo nutrida por boa parte do povo americano. Há muito mais solo fértil neste país do que em qualquer outro para o ressurgimento do libertarismo.

A resistência à liberdade

Podemos ver agora que o rápido crescimento do movimento libertário e do Partido Libertário nos anos 1970 tem raízes no que Bernard Bailyn chamou de "legado permanente" da Revolução Americana. Mas se este legado é tão vital para a tradição americana, o que deu errado? Por que há a necessidade agora do nascimento de um novo movimento libertário para reclamar o sonho americano?

Para começar a responder esta pergunta, devemos primeiramente lembrar que o liberalismo clássico constituía uma ameaça profunda aos interesses políticos e econômicos — às classes dominantes — que se beneficiavam da Velha Ordem: aos reis, aos nobres, aos aristocratas feudais, aos mercadores privilegiados, à máquina militar, às burocracias estatais. Apesar das três maiores revoluções violentas precipitadas pelos liberais — a inglesa do século XVII e a americana e a francesa do XVIII —, as vitórias na Europa foram apenas parciais. A resistência foi dura e conseguiu manter com sucesso os monopólios das terras e, por um tempo, o sufrágio restrito às elites ricas. Os liberais tinham que se concentrar em aumentar o alcance do sufrágio, porque estava claro para ambos os lados que os interesses econômicos e políticos da massa do povo estavam com a liberdade individual. É interessante notar que, no começo do século XIX, as forças do laissez-faire eram conhecidas como "liberais" e "radicais" (para os mais puros e consistentes dentre eles), e os opositores que desejavam preservar ou retroceder à Velha Ordem eram amplamente conhecidos como "conservadores".

De fato, o conservadorismo começou, no começo do século XIX, como uma tentativa consciente de desfazer e destruir o odiado trabalho do novo espírito liberal clássico — das revoluções Americana, Francesa e Industrial. Liderado por dois pensadores franceses reacionários Bonald e De Maistre, o conservadorismo aspirava substituir os direitos iguais e a igualdade perante a lei pelo domínio estruturado e hierárquico das elites privilegiadas; a liberdade individual e o governo mínimo pelo governo absoluto e o governo máximo; a liberdade religiosa pelo governo teocrático de uma igreja estatal; a paz e o livre comércio pelo militarismo, por restrições mercantilistas e pela guerra para benefício do Estado-nação; e a indústria e a manufatura pela velha ordem feudal e agrária. E eles queriam substituir o novo mundo de consumo de massa e de padrões de vida mais altos para todos pela Velha Ordem de subsistência para as massas e luxo e consumo para a elite dominante.

Na metade e certamente no final do século XIX, os conservadores começaram a perceber que sua causa estava inevitavelmente condenada caso eles continuassem a clamar pela supressão da Revolução Industrial e de seu enorme aumento dos padrões de vida para as massas e caso continuassem a se opor ao aumento do escopo do sufrágio, dessa forma francamente se colocando em oposição aos interesses do público. Assim, a "direita" (um rótulo baseado num acidente geográfico, pelo qual os porta-vozes da Velha Ordem se sentaram à direita na Assembléia Nacional durante a Revolução Francesa) decidiu mudar seu tom e atualizar seu credo estatista abandonando a oposição aberta ao industrialismo e ao sufrágio democrático. Os novos conservadores substituíram o franco ódio e desprezo pela massa do público do velho conservadorismo por uma duplicidade e demagogia. Os novos conservadores galanteavam as massas com o seguinte discurso: "Nós também favorecemos o industrialismo e padrões mais altos de vida. Mas, para alcançarmos esses objetivos, nós precisamos regular a indústria pelo bem comum; nós precisamos substituir a competição voraz do mercado livre e competitivo pela cooperação organizada; e, acima de tudo, nós precisamos substituir os princípios liberais de paz e livre comércio por medidas que exaltam a nação: a guerra, o protecionismo, o império e as façanhas militares." Para todas essas mudanças, é claro, um Estado inchado, em lugar de um governo mínimo, era necessário.

Dessa maneira, no final do século XIX, o estatismo e o Estado inchado retornaram, mas desta vez com uma cara pró-industrial e pró-bem-estar geral. A velha Ordem havia retornado, porém os beneficiários dela mudaram um pouco; não eram mais tanto a nobreza, os senhores de terras feudais, o exército, a burocracia e os mercadores privilegiados — agora eram o exército, a burocracia, os enfraquecidos senhores de terras feudais e especialmente os industriais privilegiados. Liderada por Bismarck na Prússia, a Nova Direita defendia um coletivismo direitista baseado na guerra, no militarismo, no protecionismo e na cartelização compulsória de empresas e indústrias — uma rede gigantesca de controles, regulações, subsídios e privilégios que moldaram a grande aliança entre o Estado e certos elementos favorecidos dos grandes negócios e indústrias.

Algo também deveria ser feito a respeito do novo fenômeno de trabalhadores assalariados industriais — o "proletariado". Durante o século XVIII e o começo do XIX — de fato, até mesmo o final do século XIX —, a massa de trabalhadores era a favor do laissez-faire e considerava o mercado livremente competitivo como o melhor para seus salários, para suas condições de trabalho e para permitir o acesso a uma gama maior de bens de consumo. Até mesmo os primeiros sindicatos trabalhistas eram firmes defensores do laissez-faire. Os novos conservadores, encabeçados por Bismarck na Alemanha e Disraeli na Grã-Bretanha, enfraqueceram o ímpeto libertário dos trabalhadores, derramando lágrimas de crocodilo sobre as condições de trabalho dos trabalhadores industriais e cartelizando e regulando a indústria, não por acidente impedindo uma competição eficiente. Finalmente, no começo do século XX, o novo "Estado corporativista" conservador — o sistema político prevalente então e hoje em dia — incorporou os sindicatos trabalhistas "responsáveis" como parceiros do governo e dos grandes negócios privilegiados num novo sistema estatista e corporativista de tomada de decisões.

Para estabelecer este novo sistema, para criar uma Nova Ordem que fosse uma versão modernizada e maquiada do ancién régime de antes das revoluções Americana e Francesa, as novas elites dominantes tiveram que que executar um gigantesco trabalho de enganação do público, um trabalho que continua até hoje. Embora a existência de todo governo, desde a monarquia absoluta até a ditadura militar, repouse sobre o consentimento da maioria da população, um governo democrático deve trabalhar esse consentimento de maneira mais imediata, diária. Para fazer isso, as novas elites dominantes conservadoras tiveram que fraudar o público de várias formas cruciais e fundamentais. Pois as massas agora tiveram que ser convencidas de que a tirania é melhor que a liberdade, de que um feudalismo industrial é melhor para os consumidores que um mercado livremente competitivo, de que uma cartelização monopolística deveria ser imposta em nome do antimonopolismo, e de que a guerra e o militarismo, que serviam aos interesses das elites dominantes, na verdade eram dos interesses do conscrito, taxado e freqüentemente massacrado público. Como isso podia ser feito?

Em todas as sociedades, a opinião pública é determinada pelas classes intelectuais, os formadores de opinão da sociedade. Pois a maior parte das pessoas não dá origem nem dissemina idéias e conceitos; pelo contrário, elas tendem a adotar essas idéias propagadas pelas classes intelectuais profissionais, pelos negociantes profissionais de idéias. Ao longo da história, como veremos mais adiante, os déspotas e as elites dominantes dos Estados têm tido muito maior necessidade dos serviços dos intelectuais que os cidadãos pacíficos de uma sociedade livre. Pois os Estados sempre precisaram dos intelectuais formadores de opinião para levar o público a acreditar que seu domínio é sábio, bom e inevitável; a acreditar que o "imperador está vestido". Até o mundo moderno, esses intelectuais eram inevitavelmente clérigos (ou curandeiros), os guardiões da religião. Era uma aliança confortável, esta antiga aliança entre a Igreja e o Estado; a Igreja informava seus fiéis enganados de que o rei governava por comando divino e que, portanto, deveria ser obedecido; em troca, o rei direcionava grandes receitas de impostos para os cofres da Igreja. Daí a grande importância para os liberais clássicos da separação da Igreja e do Estado. O novo mundo liberal era um mundo no qual os intelectuais poderiam ser seculares — poderiam sustentar-se com as próprias pernas, no mercado, longe da subvenção estatal.

Para estabelecer sua nova ordem estatista, seu Estado corporativista neomercantilista, os novos conservadores precisavam fomentar uma nova aliança entre os intelectuais e o Estado. Numa era cada vez mais secular, isso significava uma aliança com intelectuais seculares, não com divinos: isto é, com uma classe de professores, doutores, historiadores, economistas tecnocratas, trabalhadores sociais, sociólogos, médicos e engenheiros. Esta nova aliança surgiu em duas partes. No começo do século XIX, os conservadores, concedendo a razão a seus inimigos liberais, dependiam fortemente das alegadas virtudes da irracionalidade, do romantismo, da tradição, da teocracia. Na segunda metade do século XIX, o novo conservadorismo veio a abraçar a razão e a "ciência". Agora era a ciência que supostamente requeria o controle da economia e da sociedade por "especialistas" tecnocratas. Em troca da disseminação dessa mensagem para o público, a nova classe de intelectuais foi premiada com empregos e prestígio, como apologistas da Nova Ordem e planejadores e reguladores da nova sociedade cartelizada.

Para assegurar a predominância do novo estatismo junto à opinião pública, para assegurar que o consentimento do público seria conseguido, os governos do mundo ocidental, no final do século XIX e no começo do XX, moveram-se para tomar o controle da educação, das mentes dos homens: das universidades e da educação geral, através de leis de freqüência obrigatória e da rede de escolas públicas. As escolas públicas eram conscientemente usadas para inculcar obediência ao Estado e outras virtudes cívicas entre os jovens alunos. Além disso, esta estatização da educação assegurava que os maiores interessados na expansão do estatismo seriam os professores e educadores profissionais dos países.

Uma das formas pelas quais os novos intelectuais estatistas faziam seu trabalho era através da mudança dos significados de velhos rótulos, para que assim pudessem manipular nas mentes das pessoas as conotações emocionais vinculadas a eles. Por exemplo, os libertários pró-laissez-faire eram conhecidos há muito tempo como "liberais", e os mais puros e militantes entre eles como "radicais"; eles também eram conhecidos como "progressistas", porque eram aqueles que estavam em sintonia com o progresso industrial, com o avanço da liberdade e com o aumento dos padrões de vida dos consumidores. A nova classe de acadêmicos e intelectuais estatistas se apropriou das palavras "liberal" e "progressista" e teve sucesso em rotular seus oponentes pró-laissez-faire com a acusação de serem atrasados, "neandertais" e "reacionários". Até mesmo o nome "conservador" foi jogado sobre os liberais clássicos. E, como já vimos, os novos estatistas foram capazes também de se apropriar do conceito de "razão".

Se os liberais laissez-faire ficaram confusos com a nova recrudescência do estatismo e do mercantilismo na forma do estatismo corporativista "progressista", outra razão para o declínio do liberalismo clássico no fim do século XIX foi o crescimento de um peculiar novo movimento: o socialismo. O socialismo se iniciou nos anos 1830 e se expandiu grandemente após os anos 1880. A peculiaridade do socialismo era a de que ele era um movimento confuso, híbrido, influenciado por ambas as ideologias polares preexistentes, o liberalismo e o conservadorismo. Dos liberais clássicos os socialistas adotaram uma franca aceitação do industrialismo e da Revolução Industrial, a glorificação inicial da "ciência" e da "razão", e pelo menos uma devoção retórica aos ideais liberais clássicos de paz, liberdade individual e padrões mais altos de vida. De fato, os socialistas, muito antes dos posteriores corporativistas, foram pioneiros na cooptação da ciência, da razão e do industrialismo. E os socialistas não apenas adotaram a adesão à democracia dos liberais clássicos como também começaram a clamar por uma "expansão da democracia", que permitisse que "o povo" controlasse a economia — e que os indivíduos controlassem uns os outros.

Por outro lado, dos conservadores os socialistas adotaram uma devoção à coerção e aos meios estatistas para atingir esses fins liberais. A harmonia industrial e o crescimento seriam alcançados pelo crescimento do Estado e sua transformação numa instituição toda-poderosa, que controlasse a economia e a sociedade em nome da "ciência". Uma vanguarda de tecnocratas assumiria o controle de todas as pessoas e propriedades em nome do "povo" e da "democracia". Não contentes com a conquista liberal da razão e da liberdade de pesquisa científica, o Estado socialista instauraria o controle dos cientistas sobre todos os outros; não contentes com a liberação dos trabalhadores conseguida pelos liberais para que eles alcançassem uma prosperidade jamais vista, o Estado socialista instauraria o controle dos trabalhadores sobre todos os outros — ou melhor, o controle dos políticos, burocratas e tecnocratas em nome dos trabalhadores. Não contentes com o credo liberal da igualdade de direitos, da igualdade perante a lei, o Estado socialista o esmagaria em favor do monstruoso e impossível objetivo da igualdade ou uniformidade de resultados — ou melhor, erigiria uma nova elite privilegiada, uma nova classe, em nome dessa impossível igualdade.

O socialismo era um movimento híbrido e confuso porque tentava alcançar os fins liberais de liberdade, paz, harmonia industrial e crescimento — fins que só podem ser alcançados através da liberdade e da separação do governo de virtualmente tudo — pela imposição dos velhos meios conservadores de estatismo, coletivismo e privilégios hierárquicos. Ele foi um movimento que só poderia fracassar, e que de fato fracassou miseravelmente nos vários países onde alcançou o poder no século XX, levando as massas a despotismos sem precedentes, à pobreza e à fome.

Mas a pior parte do crescimento do movimento socialista foi o fato de ele ter sido capaz de substituir os liberais clássicos na "esquerda": isto é, como o partido da esperança, do radicalismo, da revolução no mundo ocidental. Pois, uma vez que os defensores do ancien régime se sentavam à direita da Assembléia durante a Revolução Francesa, os liberais e radicais se sentavam à esquerda; daí até a emergência do socialismo, os liberais clássicos eram a "esquerda", e até mesmo a "extrema esquerda", do espectro ideológico. Ainda em 1848, liberais franceses como Frédéric Bastiat se sentavam à esquerda na Assembléia Nacional. Os liberais clássicos haviam começado como o partido radical, revolucionário, do ocidente, como o partido da esperança e da mudança em favor da liberdade, da paz e do progresso. Permitir que eles fossem substituídos, que os socialistas pudessem posar como o "partido da esquerda" foi um grande erro estratégico que fez com que os liberais fossem colocados falsamente numa confusa posição de "centro", com o socialismo e o conservadorismo como pólos opostos. Uma vez que o libertarismo não é nada senão o partido da mudança e do progresso rumo à liberdade, o abandono daquele papel significou o abandono de sua razão de ser — seja na realidade, seja nas mentes das pessoas.

Porém, nada disso teria acontecido se os liberais clássicos não tivessem permitido que ocorresse essa decadência interna. Eles podiam ter notado — como alguns de fato o fizeram — que o socialismo era um movimento confuso, autocontraditório, semiconservador, que era a monarquia absoluta e o feudalismo com uma nova cara, e que eles próprios eram os únicos radicais verdadeiros, que insistiam na completa vitória do ideal libertário.

A decadência interna

Mas depois de alcançarem impressionantes vitórias parciais contra o estatismo, os liberais clássicos começaram a perder o próprio radicalismo, a teimosa insistência em lutar contra o estatismo conservador até a vitória final. Em vez de usar as vitórias parciais como suporte para uma pressão cada vez mais ferrenha, os liberais clássicos começaram a perder seu fervor pela mudança e pela pureza de princípios. Eles passaram a se contentar em salvaguardar as vitórias conquistadas, transformando-se dessa maneira de um movimento radical em um movimento conservador — "conservador" no sentido de que se satisfaziam com a preservação do status quo. Em suma, os liberais deixaram o lugar vago para que os socialistas se transformassem no partido da esperança e do radicalismo, e até mesmo para que os posteriores corporativistas posassem de "liberais" e "progressistas" contra os "extremistas de direita" e "conservadores" liberais clássicos, já que estes se permitiram ser jogados numa posição de esperar por pouco mais que a inatividade, que a ausência de mudanças. Tal estratégia é tola e insustentável num mundo em constante mutação.

Mas a degeneração do liberalismo não se deveu somente à estratégia e à alteração de sua posição no espectro ideológico, mas também aos princípios. Porque os liberais se satisfizeram em deixar o poder de guerra, a educação, o controle sobre a moeda, o sistema bancário, as ruas e as estradas nas mãos do Estado — ou seja, concederam ao Estado o domínio sobre todas as alavancas de poder fundamentais da sociedade. Em contraste com a hostilidade total ao executivo e à burocracia nutrida pelos liberais do século XVIII, os liberais do século XIX toleravam e até apoiavam o fortalecimento do poder executivo e da enraizada burocracia de funcionários públicos.

Além disso, os princípios e a estratégia se juntaram no declínio da antiga devoção liberal ao "abolicionismo" — a crença de que, seja a escravidão, seja qualquer outro aspecto do estatismo, ele deve ser abolido o mais rápido possível, uma vez que a imediata eliminação do estatismo, embora improvável na prática, deve ser buscada como a única posição moral possível. Pois preferir uma diminuição gradual em vez de uma abolição imediata de uma instituição má e coercitiva significa ratificar e sacionar esse mal, violando assim os princípios libertários. Como explicou o grande abolicionista anti-escravagista e libertário William Lloyd Garrison: "Insistemos numa abolição imediata o tanto quanto pudermos e, diabos!, no fim ela será uma abolição gradual. Nós nunca dissemos que a escravidão seria derrubada com um único golpe; que ela deve ser, nós sempre defenderemos."5

Ocorreram duas mudanças críticas na filosofia e ideologia do liberalismo clássico que exemplificaram e contribuíram para seu declínio como uma força viva, progressista e radical do mundo ocidental. A primeira e mais importante, tendo ocorrido a partir do começo até o final do século XIX, foi o abandono da filosofia dos direitos naturais e sua substituição pelo tecnocrático utilitarismo. Em vez de a liberdade ser fundamentada no imperativo moral de que todo indivíduo tem direito a sua pessoa e propriedade, isto é, em vez de a liberdade ser baseada primariamente na justiça e no que é certo, o utilitarismo via a liberdade como o melhor modo, em geral, de alcançar um bem-estar geral e um bem comum vagamente definidos. Houve duas conseqüências graves oriundas desta mudança dos direitos naturais para o utilitarismo. Primeiro, a pureza do objetivo e a consistência dos princípios foram inevitavelmente abaladas. Ao passo que, por um lado, o libertário defensor dos direitos naturais, buscando a moralidade e a justiça, se agarra militantemente a princípios puros, o utilitarista só valoriza a liberdade como uma conveniência ad hoc. E como a conveniência pode e de fato muda de acordo com os ares, é fácil para o utilitarista, em seu frio cálculo de custos e benefícios, passar a defender o estatismo com argumentos ad hoc aplicados caso a caso, abandonando assim os princípios. De fato, isso foi precisamente o que ocorreu com os utilitaristas benthamistas na Inglaterra: começando com um libertarismo e um laissez-faire ad hoc, eles acharam fácil deslizar cada vez mais para dentro do estatismo. Um exemplo foi a campanha pela "eficiência", e, portanto, pelo fortalecimento, dos serviços públicos e do poder executivo, uma eficiência que teve precedência sobre qualquer conceito de justiça, vindo até a substituí-la.

Segundo, e igualmente importante, é absurdamente raro encontrar um utilitarista que seja também um radical, que anseie por uma abolição imediata do mal e da coerção. Utilitaristas, com sua devoção à conveniência, quase que inevitavelmente se opõem a qualquer forma de distúrbio ou mudança radical. Jamais existiram revolucionários utilitaristas. Logo, os utilitaristas nunca são abolicionistas imediatistas. O abolicionista só o é porque deseja eliminar o mal e a injustiça o mais rápido possível. Ao escolher seu objetivo, não há espaço para uma avaliação fria, ad hoc, de custos e benefícios. Sendo assim, os liberais clássicos utilitaristas abandonaram o radicalismo e se tornaram meros reformadores gradualistas. Mas ao se tornarem reformadores, eles também se colocaram numa posição de conselheiros e especialistas em eficiência a serviço do Estado. Em outras palavras, eles inevitavelmente vieram a abandonar não só o princípio libertário, como também uma estratégia libertária consistente. Os utilitaristas acabaram sendo meros apologistas da ordem existente, do status quo, e portanto estavam abertos às acusações dos socialistas e corporativistas progressistas de que eles tinham curta visão e de que eram somente oponentes conservadores de toda e qualquer mudança. Assim, começando como radicais e revolucionários, como opostos extremos dos conservadores, os liberais clássicos terminaram como a imagem do que combatiam.

Este enfraquecimento utilitário do libertarismo ainda persiste. Quando o pensamento econômico dava os primeiros passos, o utilitarismo seduziu os economistas de livre-mercado, através da influência de Bentham e Ricardo, e esta influência está mais viva hoje do que nunca. A atual economia de livre-mercado está permeada de apelos em prol do gradualismo, com desprezo pela ética, pela justiça e pelos princípios, e com um desejo de abandonar os princípios do livre-mercado após a primeira análise de custos e benefícios. Dessa forma, a economia de livre-mercado é geralmente vislumbrada pelos intelectuais como uma mera apologia de um status quo ligeiramente modificado, e freqüentemente essas acusações são corretas.

A segunda mudança fatal na ideologia dos liberais clássicos ocorreu durante a segunda metade do século XIX, quando, pelo menos por algumas décadas, eles adotaram as doutrinas do evolucionismo social, freqüentemente chamado de "darwinismo social". Em geral, historiadores estatistas têm pintado darwinistas sociais liberais como Herbert Spencer e William Graham Sumner como cruéis defensores do extermínio, ou pelo menos do desaparecimento, dos "menos aptos" socialmente. Boa parte disso era simplesmente a maquiagem das doutrinas econômicas e sociológicas de livre-mercado nos termos evolucionistas que então estavam em voga. Mas o aspecto realmente importante e prejudicial do darwinismo social era a transposição ilegítima para a esfera social da visão de que as espécies (ou, mais tarde, os genes) se modificam muito, muito lentamente, depois de milênios. Os liberais darwinistas sociais vieram então a abandonar a própria idéia de revolução ou mudanças radicais em favor de uma atitude indolente, de aguardo das pequenas mudanças evolucionárias através das eras. Em resumo, ignorando o fato de que o liberalismo havia tido que destruir o poder das elites dominantes com uma série de mudanças radicais e revoluções, os darwinistas sociais se tornaram conservadores, opondo-se a quaisquer medidas radicais e favorecendo apenas as menores das mudanças graduais.6

De fato, o grande libertário Spencer é ele próprio uma ilustração fascinante dessa mudança no liberalismo clássico (e seu caso é semelhante ao do americano William Graham Sumner). Em certo sentido, Herbert Spencer incorpora em si muito do declínio do liberalismo no século XIX. Pois Spencer começou como um liberal magnificamente radical, virtualmente um libertário puro. Mas, ao passo que o vírus da sociologia e do darwinismo social tomavam sua alma, Spencer abandonou o libertarismo como um movimento histórico dinâmico e radical, sem contudo abandoná-lo na teoria pura. Embora aguardasse uma eventual vitória da liberdade pura, do "contrato" contra o "status", da indústria contra o militarismo, Spencer passou a considerar essa vitória inevitável, mas apenas após milênios de gradual evolução. Assim, Spencer abandonou o liberalismo como um credo combativo e radical e confinou seu liberalismo, na prática, a ações de retaguarda enfadonhas, conservadoras, contra o crescimento do coletivismo e do estatismo de seu tempo.

Porém, se o utilitarismo, apoiado pelo darwinismo social, era o principal agente do declínio filosófico e ideológico do movimento liberal, a razão única mais importante, até desastrosa, para sua destruição foi seu abandono dos previamente rígidos princípios anti-guerra, anti-império e anti-militaristas. País a país, foi a melodia sedutora do Estado-nação e do império que destruiu o liberalismo clássico. Na Inglaterra, os liberais, no final do século XIX e no começo do XX, abandonaram a posição anti-guerras e anti-imperialista, o "Little Englandism"7 de Cobden, Bright e da Escola de Manchester. Em seu lugar, eles adotaram uma obscenidade intitulada "imperialismo liberal" — juntando-se aos conservadores na expansão do império, e aos conservadores e socialistas de direita no imperialismo e coletivismo destrutivos da Primeira Guerra Mundial. Na Alemanha, Bismarck foi capaz de dividir os anteriormente quase triunfantes liberais ao empreender a sedutora unificação da Alemanha a ferro e fogo. Em ambos os países, o resultado foi a destruição da causa liberal.

Nos Estados Unidos, o partido liberal clássico há muito tempo era o Partido Democrata, conhecido na segunda metade do século XIX como "o partido da liberdade pessoal". Basicamente, ele era não só o partido da liberdade pessoal, mas também da liberdade econômica; o resoluto oponente da Proibição, das blue laws8 e da educação compulsória; o devotado defensor do livre comércio, do hard money (ausência de inflação governamental), da separação do sistema bancário do Estado e do absoluto mínimo governo. Ele tentava minimizar a níveis desprezíveis a influência dos governos estaduais e o poder do governo federal a virtualmente zero. Nas questões externas, o Partido Democrata, embora menos rigorosamente, tendia a ser o partido da paz, do antimilitarismo e do antiimperialismo. Mas o libertarismo pessoal e econômico foram ambos abandonados com a tomada do Partido Democrata por Bryan e seus aliados em 1896, e a política externa de não-intervenção foi então rudemente abandonada por Woodrow Wilson duas décadas mais tarde. Foi uma intervenção e uma guerra que deram início a um século de morte e devastação, de guerras e despotismos, e também um século em todos os países beligerantes do novo estatismo corporativista — de um welfare-warfare State9 liderado por uma aliança entre o governo, os grandes negócios, os sindicatos e os intelectuais — que mencionamos anteriormente.

O último suspiro do antigo liberalismo laissez-faire na América foi dado por corajosos e quase idosos libertários que se uniram para formar a Anti-Imperialist League na virada do século, para combater a guerra americana contra os espanhóis e a subseqüente guerra imperialista americana para esmagar os filipinos que tentavam conquistar a independência tanto da Espanha quanto dos Estados Unidos. Aos olhos atuais, a idéia de um antiimperialista que não seja marxista pode parecer estranha, mas a oposição ao imperialismo se iniciou com liberais como Cobden e Bright na Inglaterra e Eugen Richter na Prússia. Na verdade, a Anti-Imperialist League, liderada pelo economista e industrial de Boston Edwad Atkinson (e que incluía Sumner) consistia em sua maior parte de liberais radicais que haviam lutado o bom combate pela abolição da escravatura e que, então, defenderam o livre comércio, o hard money e o governo mínimo. Para eles, a batalha final contra o novo imperialismo americano era simplesmente uma parte da luta de suas vidas inteiras contra a coerção, o estatismo e a injustiça — contra a extensão do governo sobre todas as áreas da vida, tanto no plano doméstico quanto no estrangeiro.

Nós traçamos a história um tanto sinistra do declínio e da queda do liberalismo clássico após o seu crescimento e triunfo parcial nos séculos anteriores. Qual, então, é a razão do ressurgimento e do florescimento do pensamento e das atividades libertárias nos últimos anos, particularmente nos Estados Unidos? Como as incríveis forças e coalizões em prol do estatismo puderam ceder tanto a um movimento libertário ressuscitado? Não deveria a continuada marcha do estatismo no final do século XIX e no século XX causar pessimismo em vez de abrir as portas para um ressurgimento de um libertarismo aparentemente moribundo? Por que o libertarismo não permaneceu morto e enterrado?

Nós vimos por que o libertarismo poderia naturalmente nascer e se desenvolver primeiro nos Estados Unidos, uma terra impregnada de tradição libertária. Mas nós ainda não examinamos a questão: Por que aconteceu renascimento do libertarismo nos últimos anos? Que condições contemporâneas levaram a este desenvolvimento surpreendente? Devemos adiar a resposta desta questão até o final do livro, até que examinemos primeiro o que é o credo libertário e como esse credo pode ser aplicado para resolver os principais problemas de nossa sociedade.



Notas:

1 Veja Murray N. Rothbard, Conceived in Liberty, vol. 2, "Salutary Neglect": The American Colonies in the First Half of the 18th Century (New Rochelle, N.Y.: Arlington House, 1975), p. 194. Confira também John Trenchard e Thomas Gordon, Cato's Letters, em D. L. Jacobson, ed. The English Libertarian Heritage (Indianápolis: Bobbs-Merrill Co. 1965).

2 Para o impacto libertário radical da Revolução na América, veja Robert A. Nisbet, The Social Impact of the Revolution (Washington, D.C.: American Enterprise Institute for the Public Policy Research, 1974). Para o impacto na Europa, veja o importante trabalho de Robert R. Palmer, The Age of the Democratic Revolution, vol. I (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1959).

3 Bernard Bailyn, "The Central Themes of the American Revolution: An Interpretation", in: S. Kurtz e J. Hutson, eds. Essays on the American Revolution (Chapel Hill, NC.: University of North Carolina Press, 1973), pp. 26-28.

4 Monticello é o nome da casa de Thomas Jefferson, localizada próximo a Charlottesville, na Virginia. [N.T.]

5 Citado em William H. Pease e Jane H. Pease, eds., The Antislavery Argument (Indianápolis: Bobbs-Merrill Co., 1965), p. xxxv.

6 Ironicamente, porém, a moderna teoria evolucionária está abandonando completamente a teoria das mudanças evolucionárias graduais. Em vez disso, agora se percebe que uma explicação mais exata da evolução é a de agudos e repentinos saltos de uma espécie estática de equilíbrio para outra; isto está sendo chamado de teoria do "equilíbrio pontuado". Como um dos expositores desta nova visão, o Professor Stephen Jay Gould escreve: "O gradualismo é uma filosofia de mudança, não uma indução da natureza. (...) O gradualismo também tem fortes componentes ideológicos mais responsáveis por seu prévio sucesso do que qualquer similaridade objetiva com a natureza externa.

"(...) A utilidade do gradualismo como uma ideologia deve explicar muito de sua influência, pois ele se tornou o dogma quintessencial do liberalismo contra as mudanças radicais — mudanças radicais vão contra as leis da natureza." Stephen Jay Gould, "Evolution: Explosion, Not Ascent", New York Times (22 de janeiro de 1978).

7 "Pequeno Inglaterrismo", isto é, a posição de que a Inglaterra não deveria embarcar em aventuras expansionistas. [N.T.]

8 A Proibição foi o período dos anos 1920 em que vigorou a Lei Seca nos Estados Unidos. As blue laws são leis que obrigam o cumprimento de certos padrões morais, principalmente a observância do domingo como dia de descanso. [N.T.]

9 Isto é, da combinação de um Estado de bem-estar com um Estado beligerante. [N.T.]
Murray N. Rothbard (1926-1996) foi um dos maiores economistas da Escola Austríaca e o fundador do moderno anarco-capitalismo. Em seus mais de 25 livros, defendeu uma síntese entre a economia da Escola Austríaca, o direito natural, o anarquismo individualista americano e o isolacionismo da Velha Direita dos Estados Unidos.